Projeto Escrevivendo

 

Um conto para o "Escrevivendo sonhos". Continuo cometendo

erros de ortografia, pontuação, acentuação...e daí? Revisores

também precisam viver...

 

"ENXADRISTAS"

 


-"….E com vocês nosso mais novo e mais ilustre cidadão honorário, João Carlos Pontes!".

Sobe os poucos degraus do pódio com desenvoltura e ainda com alguma agilidade apesar dos setenta e alguns...

-"Obrigado, obrigado a todos por estarem aqui, obrigado mesmo. Estou orgulhoso, comovido e muito, muito feliz. O novo Parque da Cidade que acabei de concluir, é justamente minha homenagem a este lindo Rio de Janeiro que me acolheu ainda estudante, vindo de uma obscura aldeia do interior de..."

Seu olhar percorre o imenso salão, mesas brancas cobertas de flores, cristais, gravatas borboletas, diamantes, óculos e sorrisos todos virados para ele. Que coisa...No fim, os aplausos que já não o intimidam como antigamente. Agradece sorrindo mais uma vez, outra vez, dez vezes e desce a juntar-se à família: filhos, netos, noras, genro.

-"Amanhã de manhã vamos todos passar o fim de semana lá na casa de Corrêias, ..."

-"Pai, você sabe que não posso: tenho que voltar amanhã para Hamburgo. Segunda recomeçam minhas aulas na faculdade; ainda tenho dois anos de contrato e o reitor não perdoaria. Lá certas coisas não se fazem.."

-"Vô, se você é tão famoso assim, um dia você ainda pode ganhar um premio Nobel?"

-"Olha Fredy, lá na Suécia ainda não criaram premio para arquitetura, nem para o Frank Gehry...."

-"E quem é esse...o que….?

-"Deixa pra lá...Um dia seu pai leva você a Bilbao..."

-"Meu filho, seu avô não precisa mais de prêmios: ele já conseguiu realizar todos seus projetos, todos seus sonhos, não é pai?"

-"Olha meu filho, até que sim...mas a gente sempre tem que ter mais uma meta na vida para ter a força de seguir com o mesmo entusiasmo. Eu já consegui quase tudo sim, mas ainda vou dar um xeque mate naquele cara. Um gênio no xadrez: ainda não consegui ganhar dele nem uma vez."

-"Quem é?"

-"Um conhecido, foi até colega meu na faculdade. Jogo com ele lá na Atlântica com a Bolivar quase todo sábado de manhã. Um grupo de aposentados super divertidos...Pare de mexer nos copos menino, olha lá..."

A garrafa de champanhe tomba na mesa, uma taça entorna, levando dezenas de outras em efeito dominó. Garçons correndo, barulhos de vidros a tilintar por toda parte..tilintar...tilintar....


 


Rola da cama, chinelos no pé, corre ao telefone e atende: "Pontes"

Olha surpreso o fone preto na mão esquerda, a ponta de um cordão no punho direito: pénis espremido no vidro do console, as pernas do pijama despencadas sobre o peito dos pés.

-"O que é Chicão?" olha para a gravura na parede entre as duas arandelas e suspira.

-"Nada disso Chicão, vai ter que esperar até segunda feira. Chego mais ou menos dez horas, e aí eu resolvo".

Umas sacudidelas e tira os pés daqueles emaranhados.

-"Para que fui aceitar a reforma do apartamento do Freitas. Eu já estava aposentado, precisava?"

Agua gelada enquanto a Bialetti burbureja. Uma chuveirada, bermudas, camiseta, havaianas e o bonê amarelo da sorte para proteger a careca incipiente. A barba fica para depois.

O sol está ainda morno para ser um dia já de verão, mas daqui apouco...

Algumas esquinas, uns "alôs" para conhecidos das redondezas e lá está a amendoeira grande, generosa, abobada acolhedora; algumas folhas, já com ar caramelado, fingem frescor.

-"Olha aí o Pontes finalmente chegando!"

-"Ué, estou atrasado?"

Os outros caem na gargalhada. Pestana ri mais alto enquanto fala:

- "Que nada, hoje você vai ter que escolher um de nos para jogar!"

- "Porque? O Bulhões não vem?"

- "Pois é: acabou de passar por aqui. Estava muito chateado porque ontem você não foi à festa dele no Copacabana e queria saber se podia deixar a partida de hoje para a semana que vem. Veio tanta gente de fora para a comemoração que acabou levando um filho para o aeroporto e o resto da tropa diretamente para Corrêias para o fim de semana."

A briza do mar chega ao Pontes, assim, meio oleosa, já perfumada de bronzeadores, de loções; tudo cheiro de mulher. Tranquilo, Pontes distribui calmamente as peças no tabuleiro, as palmas parecem acariciar a pedra retirando a poeira ainda meio pegajosa da umidade noturna.

Pestana insiste:

- "Ah, O Bulhões falou mais: que vá você se preparando porque na semana que vem vai ganhar de você!"

Torre e rainha apertados no punho da mão esquerda, a cabeça do rei entre dois dedos da direita, Pontes levanta a cabeça.

- "Ele falou?"

- "Falou sim, e estava muito alegre. Bacana um cara desses, rico, famoso, brincar com a gente de vez em quando...E que família, viu: três filhos espalhados pelo mundo, noras, genro, sete netos, já pensou?"

O olhar do Pontes perde-se um momento entre os raios que penetram a amendoeira e os que vibram das vidraças ensolaradas do prédio ao lado.

- "O Bulhões que venha ganhar de mim, que venha..."

Pestana hesita, franze a testa e solta finalmente a pergunta:

- "Oh Pontes, como é que tu nunca casou..."

 


 


 

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Tags: escrevivendo, escrita, leitura, oficina, sonhos

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