Projeto Escrevivendo

" Enquanto o Cão desce pra comprar cerveja" e "Fragmentos" Por Paulo Araújo da Cruz

Enquanto o Cão desce pra comprar cerveja, Pai Eterno fuça nos papéis do colega. As folhas estão dentro de um saco plástico de um supermercado, em cima da mesa. Lê uma página ao léu, cuja primeira linha é a continuação de uma frase começada na página anterior.

“ deu tempo nem de chegar na última estrofe, aquela que diz : Como beber dessa bebida amarga....Quando viu era um monte de bifes ensanguentados expostos no meio fio, melecas de nojo, parecendo cabelos tudo misturado com formas já retorcidas, já disformes, espetáculo de colorido tenso, que por ser desumano toma atenção, que por ser novo é incompreensível para uma mente que teima em ser forma.

As ruas são apertadas, levam a apartamentos, células, jaulas, carnes saturando, sol cozinhando. Os ciclistas e suas mortes espetaculares, oportunidades de suicídios sempre escondidos que se parecem nos movimentos que vislumbram melhorias, visões de risco, inclusões ineficazes, contramãos atrapalhando o dia do Senhor, tudo frutas, tudo sangue. Quando chega a notícia: caso pinheirinho. Minha televisão começa a chuviscar, vou mexer na antena e tentar abafar o caso. Tem gente nossa, juízes, policia, dois frigoríficos, dois abatedouros, e o maior exportador de carne do país, além do Maluf e seus quarenta ladrões e milhares de animais com suas pulgas e desejos atoa de segurança para trabalhar.

Nos enfiamos numa estradinha de terra rumo à capital num Fusca velho cheio de fedores e explosões de azia, de muita coceira e tabaco, porque ninguém é de ferro. Eu, Tinhoso de Minas e um pastor da igreja adventista do sétimo dia, movimento da reforma. Eu não gosto de aperto, coisa abafada, me sinto mal, meu humor viajava em péssimo estado, imagens de homens caído, cenas de extrema violência, começavam a me energizar de uma forma absurda para aquela situação. Negativamente...

Chegamos. Já na porta de entrada, filas enormes, uma velha diante do espelho se lamenta entre garotas de falos enormes, meninos de três mamilos, mastodontes de cílios escarlates e alguns exóticos heterossexuais. Alguém ralhou com uma criança. O sol, lá fora, esturricava o sábado.”

- Ô seu viadinho, que é que você tá lendo ai? – exclama o Cão, chegando com um pacote de seis cervejas em cada mão. Isso é um fantasma do espírito, não é para ser lido e nem pronto.

Pai Eterno gargalha, enrolando um baseado com dedos ansiosos. Deixa, sem resistência, que o Cão lhe arranque as folhas das mãos. Tira um sarro, cantando:

- Vai; afasta de mim esse cálice, pai; afasta de mim esse cálice, pai; afasta de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue!- seu bundão, nunca deixarás de ser um torturador de merda. Deu até pra cultivar a memória! – e se caga de rir, enquanto abre a primeira lata de cerveja.

Fico ali, com cara de quem comeu e não gostou.

                                              FRAGMENTOS

  1. Achado perto da ponte, numa garrafa.

  2. Achado na calçada.

  1. Trechos de um diário de 1997.

12/03

Ontem fui buscar serviço na casa da D. Leonor e hoje também. Porra se buscar serviço deixa você rico, eu estou milionário. A minha vida é correr atrás de trampo para pagar conta e mesmo assim nunca consigo pagar. Parece que trabalhar só faz bem para os músculos da perna e para matar o tempo.

19/03

Não vou conseguir terminar o trabalho da D. Leonor. Ainda falta fazer as letras grandes. Vai ser fácil e vão ficar lindas. Agora, vou na Sonia,buscar serviço e a tarde termino o trabalho da Leonor. Vou desenhar as letras IWS e riscar nas costa da camisa. Amanhã passo na maquina e entrego e recebo (Será?).

25/04

Oba! As coisas estão melhorando. A Maria Eunice, amiga da Beatriz, telefonou ontem a noite, me convidou para ir na casa dela. Tem trabalho para mim. Vou no dentista e aproveitar no caminho para pagar o Xerox, comprar cigarro e pagar o condomínio. A noite, Alcione mais Marcelo mais Daniel viajam para Minas Gerais. Aniversário do Fran dia 30. Fico sozinho mais uma vez. Eu não entendo o movimento do mundo.

12/05

Muito trabalho! Estou bem nesta parte. Primeiro fazer as montagens do serviço da Eliane e da Maria Eunice (Toalha com monograma ME). Ontem fui na casa da Beatriz (Dia das mães). Foi bom....Sempre a mesma coisa, a mesma conversa, o mesmo abraço, o mesmo olhar e o mesmo sorriso. Algo dentro de mim me estreita, me fragmenta. O que compensa é que tenho muito trabalho e muita solidão também. Parece uma droga.

17/05

Descanso contemplativo. Não tive coragem de trabalhar. Esta tudo bem planejadinho na minha cabeça e as minhas mãos pedem para ficar uma junto da outra. E só...

25/07

Andei por aí, fazendo propaganda do meu trabalho. Propaganda é a alma do negócio. No meu negócio a alma é o meu coração, o meu desejo....Amanhã vou na loja da Sonia pegar um serviço e assim vamos indo.

  1. Sobolos rios soterrados, florestas destruídas, direitos humanos controlados, chegou a hora de dar nomes aos bois. Mãos enrugadas apertam os seios macios da jovem filha e a outra filha, a mais jovenzinha, traz mais bebidas e o sovaco limpinho, caso o pai a cheirasse. Do outro lado, na ponte, perto do mar, personagens observam com olhos de turista. Para eles, os prédios vindo abaixo, carros e outros veículos destruídos, tudo incendiado é um espetáculo de rara beleza. Com efeito, o céu é escuro e carregado e a impressão que se tem é de um drama da natureza, um cataclismo que vem do céu. Por caminhos sinuosos delimitados por faixas de pedestre, pontilhados por casas aqui e ali, chegamos a uma torre negra, imensa, que se eleva a alturas prodigiosas, perfurando o céu, dividindo as nuvens, recebendo todo tipo de raios, ataques de meteoritos, mechas de fogo, tempestade de estrelas que transbordam das nuvens aspergindo por toda a superfície uma luz fria, um ar...Não sei dizer...É tão cheio...Não sei...Comecei a usar o iPhone a pouco tempo e porque tem essa câmara de alta definição e eu preciso dela para... O que tem de gente nas cadeias, rotulados de “inimigos do povo”, morando em covas sub-humanas, obrigados a limpar banheiro público, não está escrito porque é sigiloso e por que é sigiloso? Por que as pessoas não tem vontade de falar sobre isso? De jogar pra fora o que é proibido? De falar aquilo que não se fala nunca, principalmente em público? Lá fora, o mar é extremamente calmo, principalmente quando comparado ao fogo que fervilha no céu. Daí vem um bombardeio incessante de bombas solares; estrelas, que descem do espaço sideral e que atingindo a cidade, revelam a população, numa luz de alucinação, alguns detalhes de nossa vida cotidiana, como, uma senhora assistindo televisão, um moço lendo um livro na cama e um senhor escrevendo no computador. ..Arte ou estandarte? É difícil dizer porque é tão forte a impressão de desastre, de catástrofe, de desordem que provém de minhas observações das coisas que estão a minha frente, do fogo que emana da maldade, que a arte tão procurada, tão almejada é a vida. Vamos falar da vida. O meu futuro me é desconhecido. Meu passado é um aborto...O problema é esse tipo de poder com o qual você nunca pode debater, se comunicar, exercitar livremente seus direitos. Dizer algo como: AFASTA DE MIM, ESSE CÁLICE, PAI! Você não sabe o que, exatamente, é errado, não tem verbo, palavras... O Pai virou um deus e esse deus virou um...O tempo é agora. Entre o mar e o céu, avança na direção do mar uma barra, uma língua de terra, toda ocupada de prédios em chamas, estão sob forte bombardeio de estrelas e raios estelares, deixando tudo em desordem, tudo em ruínas. Barcos cortados ao meio e que não chegam a afundar apoiam-se no mar como em muletas, enquanto ao lado flutuam seus mastros arrancados e suas vergas. O mar é calmo e não há nada tão enganador e por isso mesmo tão atraente, quanto uma superfície calma.

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Tags: As, canções, escrevivendo, escrita, leitura, oficina

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