Memórias e Histórias maio/junho 2016
Por Eduardo Ákio
Coordenação: Karen Kahn
A concha de feijão
Por Cristina
Lá fora a chuva caia incessantemente, castigando a cidade. Pessoas se amontoavam sob seus guarda-chuvas; toldos distendidos; capas plásticas – que lhe davam uma falsa proteção; casulos de metal... A enxurrada que descia sem controle sobre as calçadas e ruas, deixavam os pés encharcados e as barras das calças pesadas. Rajadas de vento, puniam os desafiadores da tempestade de verão que chegara naquele dia.
Um cenário inóspito e totalmente diferente da cozinha reconfortante e organizada, onde Gabrielle fazia seu dever de casa.
Sentada em frente à mesa de mármore fria, a menina de cabelos loiros e elegantemente bem penteado, corria os olhos sobre as contas de matemática. Somar e subtrair não lhe davam dor de cabeça, já dividir e multiplicar... aí era outra história!
Por mais que tentasse, Gabrielle não conseguia indexar os números para chegar ao resultado certo. A folha do caderno jazia entre os inúmeros farelos da borracha. Uma prova concreta da quantidade de vezes que a esforçada menina havia apagado seus erros.
─ Ah, como é difícil! ─ A força que usou para remover a conta quase rasgou o papel.
─ Qual é o problema, minha menina? ─ entrou sua mãe na cozinha esfregando as mãos num pano de prato.
─ Detesto matemática! ─ Gabrielle grunhiu e, num rompante, abandonou sua cadeira. Todavia, como conhecia a filha melhor que ninguém, Ivete a pegou pelo braço antes que a menina desaparecesse em seu quarto.
Sua mãe não possuía estudo. Nada além de frequentar até a quarta série pudesse ser aprendido. Entretanto, Ivete sempre fora uma pessoa disposta a ajudar, independente do problema. Contas, lógico que ela sabia fazer. Afinal, adivinha quem equacionava as despesas da casa? Ler ou escrever, nenhuma dificuldade. As receitas de bolo que acompanhava e seu livro das melhores refeições, ela mesma inventava em preencher. Medo do desconhecido? Nem pensar! Caso contrário, Ivete nunca teria sido mãe. Um filho era uma caixa de Pandora aberta sem qualquer possibilidade de ser fechada.
─ Venha me ajudar com o almoço. E pensaremos juntas sobre essa tal matemática.
Elas trabalharam lado a lado. Cortaram cebolas, alhos, salsinhas... temperos e ingredientes para preparar o famoso feijão da Ivete. Com calma e paciência, sua mãe lhe ensinou a soma e a subtração. Quantidades exatas de condimentos para serem colocados na panela. Uma pitada de sal a mais ou a menos, mudaria o resultado.
O aroma e o chiar do alho fritando no azeite, embalava os pensamentos de Gabrielle. Como gostava desses momentos com a mãe! Sua voz doce e melodiosa ao cantar em uníssono com a música que vinha do rádio ao fundo. As mãos calejadas pelos anos de serviço à família que empunhavam a faca ao cortar os gomos de linguiça.
Para Gabrielle, a mãe era sua rainha. A vontade de seguir uma carreira trocada pela criação dos filhos, as páginas dos livros alterados pelas folhas das revistas de fofoca. Mas nada disso importava para a menina de olhos cor de mel..
− Prove, minha menina. − Ivete colocou a concha preenchida com o caldo do feijão, na frente de Gabrielle. Sua filha sorveu um pouco do líquido e Ivete repetiu o gesto.
Ivete e seu feijão sem gosto transformavam as manhãs de segunda no melhor dia da semana.
Um ato tão simples e corriqueiro, mas que naquele dia, Gabrielle o enxergou de forma diferente.
Elas dividiram a mesma colher.
Sua atitude, mais tarde, seria somada a tantas outras lembranças e multiplicadas pela saudade dos tempos em que a matemática era seu único problema.
A curva
Por Décio
A verdadeira viagem se faz na memória.
Marcel Proust
A chuva aumentou de intensidade e fez com que Carlos se amaldiçoasse por ter saído para almoçar. Impossível não sair do escritório depois da discussão com o chefe, motivada por uma besteira, evidenciando apenas o quanto seu superior não gostava dele. E a reciproca era verdadeira.
Encostado na parede, sob uma marquise, Carlos fechou os olhos e tentou, como fazia desde criança, se concentrar no barulho da chuva para se acalmar, porém as conversas das outras pessoas ao seu lado somado aos ruídos dos carros tornava impossível sentir qualquer coisa que não fosse a pulsação da cidade.
Ao abrir os olhos, ainda irritado, percebeu que estava em frente ao Centro Cultural Banco do Brasil. Já tinha ouvido que as exposições ali eram muito boas, pois não era incomum ver filas gigantes de tempos em tempos. Apesar de não se interessar muito por exposições de arte, resolveu entrar para ver e, na pior das hipóteses, tomar um café na lanchonete do prédio.
Ao entrar não pôde deixar de reparar na beleza do edifício com suas colunas trabalhadas em algum estilo que não soube dizer qual, mas que fotografou com o celular para enviar à esposa. Ela adorava construções mais antigas! Apesar de a quantidade de pessoas que passavam de um lado para o outro, o ambiente era tranquilo e sereno, fazendo com que Carlos, mesmo em poucos instantes ali, começasse a se acalmar.
Ficou olhando a interação das pessoas com aquele ambiente e, a exceção de uma ou outra, não existia pressa ou stress nas atitudes, e que a maioria delas estava com um sorriso no rosto. Pensou nas vezes em que a esposa tinha tentado levá-lo a exposições e ele recusou dizendo que isso era coisa de gente fresca. Viu uma professora entrar com uma legião de crianças e reparou nas expressões de espanto e curiosidade com que olhavam os banners gigantes e as esculturas que ficavam ali no hall de entrada.
A exposição principal era com as obras de Van Gogh, o pintor dos famosos girassóis que normalmente tinha visto em camisetas e cartazes. Entretanto, não foi a beleza das cores intensas do artista que chamou a atenção de Carlos, mas sim um cartaz para uma exibição no subsolo sobre memórias de infância.
Chegando próximo ao pôster, pôde ver o nome da exposição: O Xodó da Memória. A simples leitura da palavra “xodó” trouxe a lembrança da irmã mais velha, que dizia ser preterida e acusava os pais de proteger Carlos, o caçula e xodó da família. Não resistiu e foi ao guichê para comprar um ingresso e se surpreendeu ao descobrir que a exposição era gratuita. Voltou rápido e desceu as escadas sem perceber que estava quase correndo, esquecendo-se completamente do serviço e do chefe irritante.
Na entrada, um grande cartaz exibia uma senhora usando um chapéu de papel, daqueles que as crianças faziam em dias de chuva para colocar no meio fio, fez um sorriso aparecer no rosto de Carlos, coisa rara nos últimos tempos. Andando pelo salão pôde ver as memórias representadas não só por objetos, mas também por vídeos com depoimentos sobre como as experiências que outrora haviam deixado marcas profundas e, de alguma maneira, positiva ou negativa, moldado quem elas são hoje.
Não pôde deixar de se emocionar com a história de uma mulher negra que guardava até hoje uma flauta como símbolo de sua vitória sobre a opressão e o racismo que viveu quando criança na escola. Tirou foto da embalagem de um achocolatado que raramente podia tomar na infância para a esposa comprar quando fosse ao mercado.
No final da exposição, quando viu a pequena bicicleta azul, idêntica a que tinha quando pequeno, as emoções tomaram conta de Carlos. Foi como se o tempo não existisse mais, pois se viu pedalando a toda velocidade pela ladeira em frente a sua casa, ouvindo os gritos dos amigos que torciam para ele fazer a curva sem bater na guia. Ninguém nunca conseguiu, mas o importante era tentar e ter as cicatrizes como prova de valentia.
Recordou-se das corridas contra os garotos da rua de baixo, onde mais importante do que vencer era tentar derrubar o adversário da bicicleta; de pedalar sobre uma chuva torrencial ou de passar as tardes fazendo barulho ao colocar pedaços de plástico nas rodas com um pregador para simular o ronco de uma moto.
Agachado, perto da bicicleta, sentindo o cheiro do óleo da corrente e brigando contra a vontade de tocar os aros das rodas e o couro macio que forrava o banco daquela pequena preciosidade da sua infância, chorou.
Então percebeu, ali, sozinho naquela caverna de sonhos, que não eram os objetos que davam vida as memórias, mas o contrário. As emoções pelas quais passamos penetram nos objetos e por mais tempo que se passe longe deles, basta um simples olhar ou um leve toque para essa energia voltar e nos transportar para o passado, resgatando sensações que julgávamos perdidas para sempre.
Sentiu o celular vibrar. A realidade.
Ela teria que esperar.
Precisava tentar fazer a curva mais uma vez.
A trajetória de vidas dentro de um baú de memórias
Por Evelyn
Ai...ai...ai... Ei...ei...ei... você esta pisando no meu pé. Epa...epa... sai de cima. Não enxerga não? Oi...oi... não empurra não. Não vê que não tem espaço aqui dentro?
Todo este alvoroço vinha de um baú que estava numa sala muito ampla, com diversas mesas cobertas com toalhas de linho branco. Lá dentro estavam guardados objetos de recordações de infância, pertencentes a um grupo de pessoas que faziam uma oficina chamada Memórias & Histórias no SESC Belenzinho. Esses objetos iam servir para a montagem, no dia seguinte, de uma exposição cujo título era “A Trajetória de vidas dentro de um baú de memórias”.
Foi só a sala de exposição ficar em silêncio que, de repente, a tampa do baú começa a levantar e ouve-se vozes dizendo: – Um, dois, três, vamos. Todos ao mesmo tempo. Vamos, vamos empurrar a tampa para trás.
Com a tampa aberta começou a sair de dentro do baú: duas bicicletas carregando um ursinho, uma boneca preta. Logo atrás, rolando, uma melancia, depois o peixe de vidro, um balão e uma cestinha feitos de papel, o cavalo de um jogo de xadrez, um caderno de recordações, uma caixa de chocolate, uma concha de feijão, uma flauta e uma agenda.
Todos os objetos de recordações queriam participar dessa exposição. Uns se achavam os mais imponentes, outros queriam ficar mais à frente, para quando fosse aberta a exposição seriam os primeiros a serem vistos. A flauta tocava o seu agudo maior e dizia: – Serei eu quem se destacará mais nesta exposição, com minhas melodias, encantarei qualquer um que vier nos visitar. Há...há...há quem fala disse o peixe de vidro: – Eu sim, encantarei a todos com as minhas cores maravilhosas. – De forma alguma, disse a bonequinha preta: – Além de eu ser bem pequena, sou muito especial. Toc... toc...toc... Todo saltitante chegou o cavalo de um jogo de xadrez e se colocou na frente de todos os outros dizendo: – Aqui será meu lugar, assim todos me enxergarão. O caderno de recordações balançava suas folhas de um lado para o outro, para que assim todos vissem suas lembranças. As bicicletas não paravam se correr de um lado para o outro. A melancia, então, não conseguiu encontrar um lugar de destaque. O balão e a cestinha feitos de papel, não se continham de alegria e diziam: – Como a exposição será no mês de junho, nos iremos nos destacar por causa das festas juninas. O ursinho, coitado, não falava nada, só observava. Era muito tímido. A caixa de bis disse para o concha de feijão: – Os visitantes quando chegarem aqui na exposição ficarão com água na boca quando nos virem. Foi, então, que de dentro do baú saiu a agenda. Foi se aproximando, se aproximando e em suas folhas estava escrito: “Todos nos trazemos histórias, temos nossas lembranças, cada um tem sua importância”. Por isso, amigos, não importa como somos ou onde vamos ficar. O importante, nesta exposição, é que vamos trazer recordações para nossos entes queridos. Depois dessas palavras, todos se acalmaram e, em silêncio, voltaram para o baú esperando o dia seguinte para a montagem da exposição.
O mundo de Lili
Por Fabíola
Lili estava correndo, atrasada para escola, porque todo dia antes de sair precisava se despedir de todos seus amigos. Ela tinha muitos amigos e, toda manhã, depois de assistir aos desenhos animados da televisão e organizar a lição de casa, ela saia brincar. Sua mãe se irritava, não entendia como uma menina tão silenciosa nos jantares e encontros familiares, poderia se fechar no quarto e ficar horas conversando e brincando com todos aqueles “amigos” desconhecidos. Mal ela sabia como Lili se sentia confortável com eles.
Cecilia, Isabel, Marcelo, Pu e Lina formavam a trupe de amigos que juntos de Lili, se fechavam no quarto para encenarem teatros, contarem histórias, fazerem dobraduras de papel e conversarem como foram os seus dias. A brincadeira era tanta que eles combinavam de se encontrar depois da escola e assim ia noite a fora, até o momento em que a mãe de Lili batia na porta e gritava: “a janta esta pronta!”. Daí Lili se despedia e ia comer.
Para Lili, tratava-se de um desafio ter de jantar, enfrentar olhares desafiadores de adultos, conversas que pouco lhe interessavam, ouvir seu irmão mais velho mastigar de uma forma estrondosa. Quando os adultos faziam perguntas em sua direção, ela não conseguia compreender muito bem, era como se eles falassem outras línguas, ela ignorava a pergunta e até chegava a se recuar. Certo dia, ela sentiu-se obrigada a gritar, os adultos estavam falando alto de mais e isso fazia que seu irmão mastigasse cada vez mais alto, incomodando-a profundamente. Seu pai chegou logo para lhe dar uma surra, ela não compreendendo muito bem o que aquele gesto significava ficou parada olhando-o fixamente, ele recuou, abaixou as mãos e pediu para que ela fosse para o quarto. Lili compreendeu que tinha feito algo certo, pois ir para quarto era sempre uma alegria para ela.
O seu quarto era seu mundo, lá estava sua cama confortável que, de vez em quando, era palco para grandes encenações, lá estava seus giz de cera, suas tintas, seus papéis coloridos e também onde estava a diversão com seus melhores amigos. Lili era suficientemente feliz no seu mundo. Sua mãe quase não compreendia nada do que ela fazia ou dizia, era muito avoada, diferente do irmão que crescera falando pelos cotovelos e se socializando com todos em volta, Lili não dispunha disso. Ela preferia viver em um mundo a parte, onde os adultos não eram necessários, além de servirem comidas e pentearem cabelos. Todo dia sua mãe recebia orientações da professora de Lili, que dizia que ela era uma criança especial, precisava de atenção. Conversava com a mãe sobre sua solidão na sala de aula, sobre que ela falava com as canetas e que passava o intervalo todo conversando com seus lápis de cor em vez de brincar de bola como todas as outras crianças.
Lili não se importava com os outros alunos da sala, ela os achava muito diferentes de seus amigos, eles pareciam pequenos adultos, conversavam sobre assuntos que ela não entendia e brincavam sempre das mesmas coisas. A professora era o adulto que ela mais gostava, era muito bonita, tinha cabelos da cor do sol quando se põe e sua voz era como as músicas do seu radinho do quarto. Depois que passava a lição, sentava na carteira com ela e as duas ficavam desenhando o resto da aula. Às vezes, Lili gostava de desenhar seus amigos e contar suas historias para a professora, outras vezes elas só ficavam se olhando. Lili desenhava bastante com todos seus lápis e até com a palma da mão e sola do pé, ela gostava como a tinta grudava na pele e ela ficava toda colorida.
Sempre encontrava algum adulto na volta para casa, ou seu pai ou sua mãe, ela entendia que eles eram como guardas de um castelo, que tinham que vigiá-la toda vez que saia da sua casa. Tinha muita imaginação, por isso sempre era muito divertido o caminho. Alguns dias era uma princesa, que precisava dos cavaleiros para que não fosse capturada por uma bruxa má, outros ela era um capitão, com seus piratas gigantes que ajudavam a encontrar o tesouro perdido. Era sempre uma aventura. Nas poucas vezes que seu pai ia buscá-la de carro, ela mudava suas historias e daí entrava no treno do papai-noel indo para o polo norte ou em uma carruagem visitando os vilarejos.
No mundo de Lili, não havia maldade, não havia sujeira, não havia defeitos, tudo era perfeito e bonito, ela era feliz, ela amava seu mundo e gostava do vento batendo no rosto, do barulho da chuva na janela, do sol quente que fazia seu rosto ficar úmido. No mundo de Lili, não havia importavancia com os pequenos adultos da sua escola, ela se importava com seus amigos que estavam no quarto esperando ela todos os dias. Ela adorava chegar da escola e deitar no urso de pelúcia lhe contando todas as aventuras que viveu no dia. Ela se juntava a todos os outros brinquedos e se reuniam em cima da cama, perguntava como fora o dia deles, e contava sobre suas viagens para a escola, sobre a professora de cabelo de sol e sobre os cavaleiros que a acompanhavam todos os dias.
Lili não se importava com hora, com dia, com sol ou com chuva, a única coisa que lhe importava era os momentos que passava se divertido com no seu quarto, vivendo no seu mundo e iniciando todos os dias uma aventura nova que só ela e seus melhores amigos conseguiam compreender.
Emoções guardadas dentro de um baú de memórias
Por Maria Cecília
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão
Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão
Milton Nascimento e Fernando Brant
In: Bola de Meia, Bola de Gude.
Uma melancia, duas bicicletas, um pássaro de cristal, um ursinho “Pooh”, dobraduras de papel, um cavalo de jogo de xadrez, uma agenda antiga, uma caixa de chocolate “Bis”, a lembrança do feijão da mãe, uma caderneta de anotações do pai, uma flauta, a boneca da avó, um pacote de “Ovomaltine”: objetos guardados dentro de um baú de memórias que trarão lembranças de histórias a serem contadas e compartilhadas.
Evelyn se lembra da primeira melancia comida na sua infância e sente ainda hoje a mesma emoção da primeira vez, todo o aroma e sabor, cada vez que come a fruta novamente.
A bicicleta – objeto mais que frequente na infância de qualquer criança – não poderia ficar de fora do baú.
Nas lembranças de Décio, a bicicleta, só era permitida depois de fazer a lição de casa, era o sinônimo de sair pra rua. Símbolo de conquista motora e de liberdade.
Marlon fazia muitas coisas com a sua bicicleta. Relembra-se dos tombos que levava, os machucados... O cheiro do mertiolate ainda está vivo na sua lembrança. A bicicleta até hoje continua muito presente em sua vida.
Para Natália, o pássaro de cristal da casa de sua avó que lhe foi dado de presente significou um resgate artístico.
A grande amizade com o seu ursinho “Pooh” de estimação faz com que a Fabíola ainda hoje mantenha uma relação próxima, estando ele presente em sua vida, não tendo, assim, “o ursinho esquecido num canto qualquer”.
Mildima colocou no baú as dobraduras que fazia no jardim de infância e até hoje exercita a sua criatividade enquanto espera a sua vez na fila do banco.
Um cavalo – peça do jogo de xadrez – faz com que Vinícius não só se lembre das mágicas movimentações do jogo como também relembra que, em cada campeonato ganho, o gosto de Tubaína com bolacha, oferecido pelo seu pai aos campeões, era sempre motivo de grande alegria.
Claudilene confeccionava suas agendas desde criança e traz escritos, em suas páginas dos tempos de sua infância e adolescência, além de todo tipo de recortes, cartas, dobraduras etc. Conta que, entre os segredos guardados na agenda está o de que quando criança não queria crescer.
A caixa de chocolate “Bis” remete Sueli ao tempo em que, toda tarde, o seu avô levava para ela um chocolate, uma lembrança doce.
Ao ser chamada por sua mãe, a caçula Cristina ouvia: – Venha experimentar o caldo do feijão! Ela ainda hoje, ao fazer feijão, lembra-se de sua mãe e sente o sabor de outrora.
Miriam tenta desvendar os mistérios de seu pai que era faroleiro do Farol do Cabo de São Roque. Herdou a sua caderneta de anotações.
Dentre as muitas lembranças a que mais marcou a infância de Jô foi a flauta – que nunca tocara – não deixando apenas boas recordações, pois relembra que precisou mostrar competência para entrar na escola aos seis anos de idade.
Nuri trouxe para o baú uma boneca pretinha, a única de sua avó que lhe foi doada quando, ao sentir saudades, esta lhe disse que a boneca representaria a sua presença, assim, foi selada a forte ligação que tem com ela até hoje.
Ao sentir o doce sabor do achocolatado “Ovomaltine”, a Cecilia fecha os olhos e é como se fosse transportada para o tempo em que criança ou adolescente sentava-se à mesa com a sua família numerosa para tomar o café. Tempo em que todos juntos sentavam para fazer as refeições, momentos em que, sem saberem, eram alimentados também os vínculos afetivos. Todas as refeições eram um acontecimento com muitas vozes e animação.
Tecendo o seu passado nas tramas do tecido rústico de sua toalha de banho da Neideci traz memórias das suas raízes.
Todos os objetos significam experiências vividas e, ainda hoje são contemplados como coisas preciosas.
Quando compartilhadas, tornam a emoção coletiva, emocionando a todos.
Também poderiam estar no baú: cataventos, bolas de gude, pipas, bonecas de pano, bolas de meia, bambolês, gibis, quebra-cabeças, gibis, ioiôs, bolas de sabão, Cinco Marias, estilingues, caleidoscópios, pernas-de-pau, carrinhos de rolemã, bonecos João Bobo, pião e outros tantos objetos que mostravam as crianças estarem presentes no mundo.
Quem sabe se as memórias guardadas no baú fossem relatadas num livro – ou numa agenda como a da Claudilene – poderiam trazer de volta as crianças que foram um dia, tornando estas pessoas um pouco imortais?
Talvez seja só uma questão de tempo...
Mona
Por Marlon
Olá visitante!
Você é criança? Tem alguma aí com você? Tem alguma em você, aí dentro? Conte isso a ela!
Estava tudo escuro, ouvia-se vozes, mas não entendia do que se tratava, notava-se apenas a presença inconfundível de crianças pelo ar de entusiasmo e curiosidade. A caixa se abriu, quando consegui ver o que se passava do lado de fora. Dei-me de cara com um dos donos das vozes infantis. Era um menino loirinho, cabelo tigelinha, magro que só ele. – Uma bicicleta! – gritou. Estava feliz e radiante por causa do seu melhor presente de aniversário de 5 anos. Me senti tão orgulhosa, foi assim que conheci o alemãozinho.
Nessa casa, onde nos conhecemos, andávamos inicialmente apenas no quintal. O portão era o limite. Ficava em uma avenida movimentadíssima ele estava aprendendo ainda, tínhamos de usar rodinhas para apoiar o bebezão. Quanta energia! Pedalava e pedalava, bebia água e pedalava mais e mais. Não deixava o irmão mais novo nem chegar perto, quanta briga por minha causa! Na hora de ir tomar banho, choro, chinelada, broncas, eu estava me acostumando à rotina de bicicleta de menino. Olha, não é fácil para ninguém. Pouco tempo depois, mudamos para um bairro próximo. A casa era modesta, a rua era tranquila, mais alegre, cheia de crianças. Começamos as primeiras pedaladas na rua, aos domingos, sob supervisão da Dona Leda e Sr. Rui. Bastou o menino ver que os outros andavam em suas bicicletas sem as rodinhas, que ele se apressou em aprender o mesmo. Em meio a tombos e sustos, levou poucos dias. Os meninos, geralmente, gostam de competir e alguns mais invejosos tentaram nos derrubar várias vezes.
Fomos nos habituando ao novo bairro e, em poucos meses, o alemãozinho e eu conquistamos nossa autonomia. Saíamos à rua em qualquer dia da semana, desde que a lição de casa estivesse feita. Eu achava justo, mas ele, nem sempre cumpria com sua parte... Crianças!
Éramos companheiros. Ele me levava para comprar pão, jogar bola, correr atrás de pipa, comprar bombinhas, jogar pedra no córrego, fugir do bêbado, fazer fogueira e tudo mais que se possa imaginar que um menino de 6 anos pode fazer em cima de sua bicicleta.
Bom, fomos nos conhecendo cada vez mais e nem sempre tudo foram flores, viu! Às vezes, ele andava com uns meninos maiores. Eu queria morrer quando ele pedia para andar na bicicleta dos outros. Ai que ódio! Eram bicicletas maiores, tudo bem, mas o que me entortava os raios, era ver o sorrisão dele em cima daquelas magrelas ridículas. Que desaforo!
E quando ele se engraçou com uma sirigaita que morava perto do córrego! (Sou um pouco velhinha já, anos 80 tá gente? Sirigaita era a piriguete daquele tempo). Ah, os homens já se mostram uns tontos desde cedo para alguns assuntos. Mulher é um deles. Ele me fazia sair da nossa rua, asfaltada, com uma lombada alta e segura, para andar perto do córrego! Aquele córrego fedorento! As ruas de terra me sujavam toda, fora que tinha um monte de caco de vidro e pregos naquele chão nojento, um perigo pros meus pneus. E lá ia o exibido, chamar a sirigaita de trança pra andar de bicicleta. Pior! Pra andar em mim, porque ela não tinha bicicleta! Que vontade de lhe dar um tombo, pra ela não se meter mais a gente!
Ai como ele me aprontava! Mas eu também tinha meus momentos de dar o troco. Quando o teimosinho resolvia passar em algum lugar mais escorregadio, caíamos, quase sempre. Nas primeiras vezes, ele voltou pra casa aos prantos. D. Leda avaliava a situação e era firme. – Vou passar Mertiolate. – Isso devia doer muito. Enquanto ela ia até a caixa de remédios, ele assoprava o machucado. Muitas vezes, contava com a ajuda do irmão mais novo. Quando ela colocava o tal do Mertiolate no machucado, ele parava de assoprar e chorava. Sinceramente, eu não entendia isso, mas eu achava bem feito pelo que ele me fazia passar. Com o tempo, o danado aprendeu a negociar, pedia para a mãe usar um tal de mercúrio no lugar do Mertiolate. Às vezes conseguia, mas nem sempre. Até que, passou a esconder os machucados. Segurava o choro, lavava os arranhões na torneira do quintal e, quando a mãe chegava perto, disfarçava para ela não ver.
Esses remédios deviam ser horríveis, mas o pior, era uma tal de injeção. Eu nunca vi uma, graças a Deus, mas quando as crianças não queriam comer ou não se agasalhavam, ou não colocavam chinelo, as ameaças eram rudes. – Se você não fizer isso, eu vou te levar no médico pra tomar injeção! – Eles obedeciam de pronto, bem ágeis e não reclamavam. Eu, hein!
E por falar em machucados, teve uma vez que caímos feio. Meu alemãozinho era teimoso e adorava, mas adorava desafiar os limites. Ele pedalava na rua, na velocidade máxima que alcançávamos. Não contente, passou a pegar embalo na ladeira do bar e entrava na rua, mas era muito rápido. Ah, como corríamos, eu me esforçava muito. Não contente, o bonito passou a andar sem as mãos no guidom, pouco a pouco, até pegar confiança. Depois da ladeira, entrava na rua, me deixava em linha reta e seguia sem segurar o guidom, até a lombada. Um equilibrista! Achei que ele tinha vocação para o circo. Não contente ainda, o doido varrido resolveu passar pela lombada sem as mãos! Naquela velocidade! Como pode? Não, eu me enganei quando disse circo, ele ia ser cientista. Sim, desses que não sossegam enquanto não testam todas as possibilidades. E lá fomos, descemos a ladeira, entramos na rua, ele tirou soltou as mãos e seguimos na direção do desafio. Eu juro, ainda tinha uma esperançazinha de que na hora h, ele iria desistir disso e me agarrar no guidom. Hã... voamos. Dessa vez, fiquei um pouco preocupada, ele demorou a levantar. Segurou o choro, lavou os arranhões, ficou meio amuado. Em poucos dias, fez as pazes com a ladeira, com a rua, a lombada. Continuou andando sem as mãos, mas, ao chegar na lombada, mostrava que aprendeu direitinho a lição.
Hum, sabe do que eu gostava? Eu gostava quando ele cuidava de mim. Pegava esponja, detergente, balde. Me banhava com tanto carinho! Lavava todos os raios, os pneus, meu quadro, o guidom. Usava Bombril nas partes com ferrugem e depois de lavada, me secava. Engraçado, às vezes, me contemplava depois de limpa, que doce! Tadinho, levou cada surra por gastar toda a água da casa para lavar a bicicletinha, ou quando pegava alguma toalha de banho para me secar, ao invés do ...argh... imundo pano de chão. Quanta injustiça com meu alemãozinho!
O tempo passava e ele ia crescendo, mas eu não. Logo logo, eu não seria suficiente para levar ele, que estaria maior, com sonhos maiores, outras distâncias a percorrer. E eu, não poderia mais participar disso. Ficava pálida só de imaginar meu destino. Poderia ser doada, vendida, teria a possibilidade de parar em outra família ou num ferro velho. Ai meu alemãozinho, o que seria de mim sem você?
Não vou contar a nossa despedida. Depois dela, fiquei muito tempo em um depósito de bicicletas, fiz muitas amigas lá. Ouvi cada história, você nem imagina... posso dizer que fui muito feliz com ele, apesar de tudo. Hoje as coisas mudaram, as crianças não andam tanto de bicicleta. Só as crianças maiores – olha só que curioso! Fiquei sabendo que a cidade está cheia de ciclovias, são vários e vários quilômetros, mas as crianças pequenas não andam nelas, só as grandes. Que orgulho em saber que somos mais importantes, defendidas e amadas. Depois do depósito, um colecionador foi com a minha lata e cá estou, nessa saudosa exposição. Ai ai, já se foram 30 anos, ele deve estar com 36. Como será que ele está? Será que se lembra de mim?
O que se esconde e o que se mostra
Por Miriam
Tem cheiro de guardado, de um tempo diferente que não vivi. Seu formato, menor que minha mão, possivelmente escondia-se nas suas. As páginas manchadas de tempo e de cores do envelhecido parecido com meu pai e comigo. Logo também, estarei.
Ali registravam-se as datas dos nascimentos dos filhos, do casamento de minha irmã; escreviam-se endereços provavelmente importantes, mas que a erosão do tempo e do espaço deram conta para que não existam mais. Há registro das parcelas do Imposto de Guerra, pagas pelos cidadãos e fazendo lembrar que, em alguns períodos, nos arrancam os recursos e a paz.
Existem apontamentos sobre fatos ocorridos no seu trabalho como aquele da cuba quebrada do farol. O senhor precisou assumir a responsabilidade pelo outro faroleiro. Há datas de suas permanências em cada farol onde trabalhava, sinalizando rochas e perigos nos caminhos dos barcos e navios. Registrava-os. Talvez, como forma de driblar o esquecer.
Ironicamente, há escrito, quase desenhado, o nome de um remédio farmacêutico contra o esquecimento. E eu, lutando contra o apagamento e buscando traduzir as lacunas, busco decifrar vestígios.
Já me aconselharam: se ele vivia segredos. Deixe-os como estão, esquecidos.
Mas não posso ignorar sua caderneta: uma trilha sem mapa., uma esfinge a ser decifrada.
O que ela mostra: a falta. A ausência do nome de seu pai. Não há registro do nome de sua mãe, minha avó. Evidencia sua identidade forjada a partir de si mesmo. O que deve ter lhe custado aqueles estranhamentos de sua parte e de nossa. Quanta solidão!
Preciso adentrar um pouco mais na sua história para que a minha possa ser recontada.
O botão
Por Natália
Na casa grande perde o enlace e se vai.
Assim é o amor,
que quando afrouxa
desatina e perde o rumo.
Reaperta na saudade, na lembrança,
É verdade.
Se o bendito amor que encaixa como botão
brotar em meu coração,
dou um laço com agulha e linha, bem fininha
pra lembrar que o que junta é a casinha
Tão minha, que vejo só a solidão.
Pra viver de Amor
É preciso tempo.
Não aquele contado,
Aquele marcado em canção.
Que a cada Tum,
Vê brilhante o seu amado
Reluzido no amigo
O perigo desejado,
De entregar ao fogo
O seu único coração.
Efêmera Vida
É brusco o assopro dos anjos no recolher de uma alma
Que reluz por não conter em um corpo singelo,
E se esvai pelas beiradas aos céus.
Ainda há vida em seu caminho de flores
Mas só as flores,
Que por compaixão convidam com seu perfume
Para o contemplar de um olhar sem brilho
Onde o vazio possui presença
Na ausência da vida breve.
Trilhos dos Anjos
Correm nas veias como trilhos
Os brilhos e os desatinos do amor
Que corrói e alimenta na mesma moeda,
O seu incompreendido valor,
De tamanho esse,
Que desceriam mil anjos a bailar,
Cem arcanjos a proteger,
E subiriam alguns outros a se intrometer.
Pássaro do passado
Por Natália
Estou sentada de frente a este objeto de resina, meio pássaro, meio passado, no meio do meu presente.
Ganhei de minha avó logo quando me casei há seis meses atrás. A ela, um simples presente; a mim, uma mistura de memórias, sentimentos e possibilidades.
Uma lembrança da arte da minha infância, o brilho curioso das cores e texturas me faziam criar um mundo só meu, só meu e de minha avó.
O pássaro ficava lá na mesinha de centro do sítio onde ela ainda mora.
Ela e eu na aula de artesanatos, eu e ela tricoteando um sapatinho. Ela me ensinando a pintar tela a óleo. Eu me arriscando na pintura a gesso. Ela e seu filho – saudades de meu pai – trocando livros e saboreando palavras e me dando a dica do quanto seria bom ler.
E aquele pássaro permanecia lá...
Lugar onde brinquei tantas e tantas vezes entre as bananeiras, amoreiras, abacateiros, laranjeiras, subindo e descendo os barrancos da minha infância.
Sentávamos, minha irmã e eu – saudade dela – no colo do meu avô – saudade dele – e ele nos contava histórias as quais nem pareciam ser recém-inventadas enquanto eu brincava com seu grande lóbulo da orelha.
E aquele pássaro, de lá do passado, hoje fica perto aos meus livros e me traz a esperança de um futuro com mais arte.
E este pássaro continua aqui comigo.
Ele será o meu condutor, um fio da memória a me lembrar de que posso mergulhar em meu mundo um pouco mais.
Ele é translúcido como a alma deve ser, cheio de formas e cores como o mundo que quero viver.
Confio em seu colorido das asas com figuras abstratas e tons alaranjados, amarelados, pretejados e ao mesmo tempo translúcidos, em que serei capaz de trazer para a minha mão e ponta dos dedos o poder de criar algo para mim, e quiçá para o mundo. Espero uma criação que venha do fundo da alma ou da sagacidade do cérebro prático em fazer um poemeto ou uma grande aquarela.
Ela hoje pintando e bordando, em seus 86 anos, e eu aqui, retomando uma vaga lembrança do que é criar.
– Ei Pássaro, fique aqui e me ajude a voar.
A tecer um passado
Por Neideci
Não sei de que maneira ela chegou às minhas mãos, só sei que guarda as digitais e a voz de minhas raízes. Embora não conheça detalhes de sua história, eu a preservo na figura desta toalha de banho. Não é felpuda, tampouco de fio egípcio, muito pelo contrário, foi feita com um rústico tecido de saco de farinha de mandioca, cuidadosamente alvejado e quarado sobre a grama e sob o sol ardente.
Apresenta-se em formato retangular. Em seu comprimento, há palavras grandes que se sobressaem. Provavelmente essas palavras identificam o fabricante ou o distribuidor da farinha de mandioca.
Seu trabalho manual se iniciava com o ato de desfiar o próprio tecido, formando uma grande franja de inúmeros fios de linha que seriam delicadamente trabalhados, através de fios trançados que formavam desenhos simétricos. Ao final, o barrado enfeitava o tecido de saco, fazendo lembrar uma renda.
Essa técnica hoje é conhecida como macramê – embora desconfie de que as mãos que a teceram e os olhos que a admiravam não pronunciariam essa palavra, pois parece-me muito sofisticada para pessoas de linguajar simples, de um lugar igualmente simples, como é conhecida a procedência de minha família. Muito provavelmente as pessoas desse tempo a chamassem simplesmente de pano com fios trançados.
Meus devaneios, alimentados por narrativas de meus pais, me levam a pensar que esse tecer pode ter ocorrido à sombra de uma frondosa árvore, enquanto o pão assava no forno à lenha.
Na medida em que as mãos teciam os fios, no coração brotava uma canção, ou um suspiro, um lamento que a levava a enxugar a lágrima com a outra ponta do próprio tecido que tecia. Talvez fosse esse o único momento em que teria sido permitido a essa mulher traçar seus próprios caminhos, através dos fios pendurados no pano e assim seguia, por onde sua imaginação a pudesse passear.
O ciclo das coisas
Por Raquel
Ele ainda era demasiado jovem para saber que a memória do coração elimina as coisas más e amplia as coisas boas, e que graças a esse artifício conseguimos suportar o peso do passado.
Gabriel Garcia Marquez
Mas a saudade é isto mesmo; é o passar e repassar das memórias antigas.
Dom Casmurro
A mãe reclamava da chuva. A terra molhada era útero fértil para o mato que não parava de crescer. Lá ia capinar novamente o terreirão, promessa futura de uma casa maior que demoraria muito a chegar. Com o semblante magro e sofrido, apesar da pouca idade, imaginava cada cômodo que ocuparia aquele espaço abrigando a família. Sonhava com dias melhores, com a mesa farta e com o futuro da pequena. Enquanto isso, a menina se divertia em seu jardim particular de infinitas miniaturas.
Devia ter cinco anos, não mais. A vida difícil dos pais não refletia o seu minúsculo universo. Para ela, a vida era linda e o mundo uma explosão de descobertas. A casinha com o quintal enorme, um verdadeiro jardim de flores e borboletas que lhe faziam companhia e levavam seus sonhos lá longe, onde ela não podia alcançar. Conversava com as joaninhas e ficava horas observando o duro trabalho das formigas em sua incessante jornada diária. Chegava a sentir pena de um inseto tão pequenino carregando folhas tão gigantes, às vezes.
As flores amarelas eram as suas preferidas porque eram mágicas. Observava por dias a sua troca de roupa e, de repente, se deparava com a incrível transformação das singelas “flores de nuvem branca”. Naquele momento, – ah! que divertido soprá-las ao vento! –ficava observando cada minúsculo paraquedas atingindo suavemente o chão ou voando para longe até se perder de vista. Nem imaginava que nesta suave queda criava o ciclo que alimentava e dava vida a novas flores áureas.
Um dia, pediu e ganhou da mãe um pintinho vindo da feira, lindo com penugem de algodão amarelinho. Introduziu o gigante em seu minimundo, mas o mantinha afastado de seu exército de formigas, porque não queria que elas se assustassem com o mais novo morador da vizinhança.
Para protegê-las, decidiu ensiná-lo a caçar suas próprias minhocas. Ela o ajudava cavoucando a terra molhada para encontrar os bichinhos molengas (blagh) que ele tanto gostava. Ela sabe que ele teve um nome, que ela deu com todo carinho, assim como as borboletas, as joaninhas e as formigas, mas isso não vem ao caso. Importa que ela tinha, agora, um amigo e se apegou a ele...
Brincavam juntos todos os dias numa rotina quase ritualesca. No café da manhã, ela lhe servia algumas migalhas de pão. Depois, seguiam com a importante tarefa de explorar o jardim, passar em vista a tropa de formigas, tricotar com as joaninhas, recomendar seus sonhos às borboletas e, por fim, ensinar ao amigo a difícil lição da sobrevivência.
Os dias foram passando e ela quase não se deu conta de que, a exemplo das flores amarelas, seu amigo também trocara de roupa. Criara penas brancas, longas e também fortes asas, contudo, diferente das flores de nuvem, não podia voar. E ali, preso ao chão, agigantou-se ainda mais em seu pequeno jardim e virou o terror das joaninhas. O amigo era teimoso e, por mais que ela explicasse sobre a importância do equilíbrio e da ordem, ele insistia em caçá-las.
A menina sentia a tensão daquela relação que não poderia dar certo e teve que lidar, talvez, com um dos maiores conflitos de sua vida até então.
A mãe, que via o apego da criança àquela ave crescida, precisava ajudar a pequena a resolver o tão difícil dilema. Propôs à menina que enviasse o amigo indisciplinado à casa de uma tia, onde havia uma granja. Assim, ele poderia ter muitos amigos da mesma espécie, teria com quem conversar, com quem se divertir e, sobretudo, não atacaria mais as joaninhas porque lá havia ração de boa qualidade. Por fim, lá ele poderia ser feliz para sempre!
Confiando na sabedoria da mãe e acreditando que aquela era a melhor saída para o bem de todos os seus amigos, despediu-se do companheiro, com grande pesar, mas com a certeza de que dava a ele o melhor destino.
Naquele domingo, a menina surgiu saltitante à porta da cozinha; passou em frente ao espelho, sorriu como de costume, apreciando os dois buraquinhos que se formavam em cada lado do rosto. A mãe chamou, enrubesceu e seguiu em direção à mesa com a toalha branca remendada na ponta.
Parecia dia de festa. O cheiro gostoso que saia do forno preenchia toda a cozinha e parecia convidar a família para um almoço comemorativo. O tempero da mãe dava um toque especial para o prato tão conhecido, porém raras vezes visto naquela casa de poucos recursos. O pai ajudou para que a menina tomasse seu lugar na cadeira. A mãe arrumou delicadamente os pratos desiguais e serviu com carinho o delicioso assado que todos saborearam e repetiram.
Enquanto isso, formigas, borboletas e joaninhas pousavam tranquilas no mato crescido que a mãe, outra vez, teria de capinar.
O espelho
Por Raquel
O tempo tenta sequestrar meu sorriso, mas resisto como uma criança com medo da mãe ao ralar o joelho. Engulo o choro, para não doer mais.
Clarice Lispector
De repente, se viu diante do espelho e deu de cara com uma figura totalmente desconhecida. O semblante endurecido e as várias marcas profundas no rosto não eram nem de longe a imagem que conhecia de si mesma. Os cabelos desalinhados, as olheiras profundas a pele sem viço...
Tentou esboçar uma expressão qualquer, mas aquela fisionomia se mantinha intacta olhando para si, como um retrato mórbido de um cadáver gélido. Era assombrosa aquela fotografia e tentou entender como e quando chegara ali. Enquanto isso, o olhar penetrante que vinha do espelho dizia que ela estava presa àquele rosto sem movimento cuja musculatura parecia congelada em uma expressão triste e profundamente amarga.
Uma avalanche de pensamentos invadiu sua mente num desespero inútil de resgatar a jovem de outrora. Tentou lembrar como era seu sorriso, mas ele tinha se apagado totalmente de sua memória. Nenhum esboço, nem nada que lhe desse uma pista qualquer sobre aquela personagem de seu passado; tudo o que sabia era que, um dia, alguém havia cantado pra ela uma canção que dizia para que nunca perdesse o riso largo e a simpatia estampada no rosto.
Nesse momento a garganta seca e gosto de fel na boca era tudo o que conseguia sentir. Os dentes cerrados eram como cadeados para os lábios que não podiam se movimentar.
Num breve relance, lembrou-se de que tinha covinhas quando menina e que amava sorrir diante do espelho para admirar os pequenos buraquinhos que se formavam em cada lado da face; que enrubescia quando alguém a surpreendia neste gesto porque sabia que ninguém entendia aquela atitude e, não raro, acusavam-na de narcisista.
Desafortunadamente, o único rosto do qual se lembrava era da pequena menina inocente na fotografia que, sem saber o porquê, carregava sempre consigo. Lembrança de quando a mãe a tinha preparado, vestido e penteado delicadamente para o dia da primeira comunhão. Era um semblante leve, quase angelical. No fundo daqueles olhinhos, se podiam ver os sonhos e todos os desejos infinitos de um conto de fadas, o qual ela acreditara poder viver.
Reviveu ainda outro flash de uma jovem sonhadora cheia de livros e ideias. Tudo se misturava num confuso emaranhado de crianças, contas bancárias, compromissos sociais e a remota lembrança da principal avenida da cidade. Quase se podia sentir o vento gelado que batia no rosto enquanto se dirigia com passos vigorosos em direção ao imponente prédio de vidro.
De volta espelho, ela buscava entender qual era a conexão da imagem que via e daquela mistura de caricaturas e cenas que ela não sabia ao certo se eram lembranças do vivido ou divagações inventivas de sua mente inquieta.
Tentou esboçar, uma última vez, alguma expressão para dar um pouco de luz àquele rosto triste, mas logo desistiu e teve a certeza de que o espelho havia aprisionado sua alma.
Enfurecida, num ímpeto de raiva, golpeou o espelho que se partiu estilhaçando-se no chão do banheiro. Viu que a mesma imagem tinha se multiplicado em uma constelação de cacos diversos e irregulares a seus pés. O que se mantinha era o olhar fixo do qual ela não poderia fugir.
A mão ensangüentada doía menos que a própria alma, agora, com a terrível constatação de que ela não sabia mais como sorrir.
Meu doce avô
Por Sueli
Há duas épocas na vida, infância e velhice em que a felicidade está numa caixa de bombons
Carlos Drummond de Andrade
Tenho lembranças extraordinárias de meu avô paterno, que permanecem tão vivas dentro de mim que posso recordá-las exatamente como se ainda vivesse em minha infância. Quando vejo um antigo trem cortando o horizonte em minha direção, numa cidadezinha do interior; quando vejo jardins com rosas amarelas e, principalmente quando como um chocolate, um BIS.
Ao entardecer, corria para a varanda da casa de meu avô para ver o trem passar, aguardando a sua chegada. Seria capaz de esperar, por horas, sentada nos pilares que cercavam a varanda, revestida com piso de caquinhos de cerâmica, nas cores vermelho, amarelo e preto. Era caprichosamente encerada e os últimos raios de sol do outono refletiam no piso e o tornavam ainda mais brilhante e bonito.
Ao ouvir o ranger do portãozinho de ferro, sabia que ele havia chegado. Silenciosamente, entrava pelo corredor lateral, nas mãos carregava uma maleta de couro marrom, já bem desgastada pelo tempo. Guardava a maleta em seu quarto, lavava as mãos e vinha ao meu encontro. Ah, como esperava por esse momento, dava-me um beijo e um chocolate, era sempre o mesmo chocolate, apenas um BIS.
Era um homem de poucas palavras, magro, de baixa estatura e com olhar muito sereno. Ficava observando o desembrulhar do chocolate, envolto num papel azul brilhante e, para ficar mais tempo ao seu lado, desembrulhava e comia vagarosamente.
Após um longo dia de trabalho, em uma fábrica de fogões, não demonstrava cansaço, ao contrário, tinha folego para pegar o regador e molhar o seu jardim. Amava as flores, em especial as rosas amarelas, acredito que, em silêncio, conversava com elas e, a mim, recomendava com muita delicadeza que tivesse cuidado ao brincar no jardim.
Era um tempo mágico que passávamos juntos, horas que gostaria que se prolongassem, porém meu avô dormia muito cedo, pois dizia: “o trem não espera por ninguém!”.
Deixou lembranças, heranças, sonhos guardados em minha memória e meu coração.
Hoje conto sua história aos meus filhos e, quando percebo, as horas se passaram e a mesa ficou repleta de papel azul brilhante, quase como um céu.
Xodó da memória
Por Vinícius
Talvez devêssemos dizer: toda criança que brinca se porta como um poeta, uma vez que ela cria para si o seu próprio mundo, ou, para dizer com mais precisão, transpõe as coisas de seu mundo para uma nova ordem, que lhe agrada. Seria incorreto pensar que a criança não leva este mundo a sério; ao contrário: leva tão a sério a sua brincadeira, que nela investe grandes cargas de afeto.
Freud
Eh xodó, aquele xodó, quanta memória mergulhada em lembranças daquele sentimento que amarra o peito, que faz a gente relembrar, lembrar e recordar o gosto daquela infância tantas vezes. Infância e memória, duas parceiras unidas para um saboroso “gosto de infância”, doce como um chocolate Bis, nostálgico como um diário, essa memória nos faz brincar de infância, fazendo com que experimentemos novamente aquele estado de consciência do passado que insiste em ser reavivada. Só quem teve um xodozinho de memória sabe do que estou falando. Portanto, falo de você e de todos nós que temos lembranças para serem compartilhadas, que estão dobradas e guardadas na gaveta, em um órgão que constrói e armazena pensamentos, que registra sentimentos, uma região localizada em nosso sistema nervoso central, o cérebro. Que tem por missão resguardar um bem precioso: nossas memórias. Todos nós temos memórias a compartilhar e todas elas serão, de alguma forma, rememorada, seja o cheiro da pipoca estralando na panela de barro, seja as cicatrizes da infância marcadas na pele do corpo. Esse processo é um nostálgico retrocesso, nos levando mentalmente a uma viagem ao passado, dependendo da intensidade desse alumbramento, da vivacidade como consequência e dessa sensação momentânea de que o passado é o nosso presente.
Xodó e memória se dão tão bem. É tão bão lembrar memórias, melhor ainda é quando a lembrança é tocada, assim, do nada, sem aviso prévio, de supetão. São circunstâncias oportunas que devemos abraçar com gratidão, pois fazem o papel de pontes ligando esse passado nostálgico, distante, algumas vezes nem tão distante assim, como o rememorar o cheiro e o gosto de quando provou uma fruta pela primeira vez na vida. Tem ideia do que é isso? É justamente essa a ideia da exposição Xodó da memória: transgredir esse passado através desses objetos expostos. Perguntas como essas justificam a presente exposição, como se fosse uma viagem nas mil e uma aventuras que já vivenciamos. Xodó mesmo é quando rememoramos histórias que se associam a gostos doces, mais gostoso e mais palatável, tornando-se uma viagem mental ao passado (coisa que, pois faz um bem danado, tanto pra alma como pro corpo) seja qual for o objeto ou experiência sentimental, a memória sempre nos vem a mente e nos revisita e revitaliza com saudosas histórias que deixamos guardadas no peito, como um xodozinho único, especial e vivaz.
A trajetória de vidas dentro de um baú de memórias
Por Jovenize
No auge de seus 97 anos, apesar de estar lúcido e razoavelmente saudável, Dr. Oddaue é um juiz aposentado, obcecado pela segurança da rotina. Todos os dias ele acorda, toma o café da manhã, sai para caminhar, retorna para casa, toma seu banho, se arruma e lê as notícias do dia. Impreterível e religiosamente nessa ordem. Ciente de que odeia mudanças, compreende que, de repente, tudo pode mudar e luta consigo mesmo, diariamente, para aceitar que a vida vai além da rotina. No entanto, diante dessa dificuldade, decidiu acomodar-se num local muito peculiar de sua casa sempre às 18 horas, para conversar com quem o fazia despertar dessa sua fraqueza. Todavia, esse hábito está prestes a ser interrompido definitivamente, visto que Dr. Oddaue não tem mais autoridade sobre seus desejos e vontades.
Julho de 1960
– Meu amor, mudanças são oportunidades de recomeçar. Mudanças nos mostram que um ciclo de vida acabou, mas assim como a fênix precisamos ressurgir a partir daquele término.
– Não gosto de mudanças. Tenho medo do desconhecido. Mudanças sugerem adaptações. Adaptações implicam em aprender e reaprender coisas. Mudanças também exigem aperfeiçoamento. E aperfeiçoamento leva tempo. A rotina me dá confiança. A rotina me torna ágil. A rotina é previsível. Na rotina eu tenho controle...
– Pode parar! Esse seu discurso eu já conheço, Dr. Oddaue! Você não é mais uma pessoa sozinha no meio da multidão. Você tem a mim. Lembra? Juntos podemos vencer qualquer obstáculo. E se for difícil, e se demorar, ajudaremos um ao outro. Pense assim: é hora de criar uma nova rotina, éhora de crescer!
Meados da década de 1930
Dr. Oddaue cresceu num ambiente que não lhe proporcionou muitos estímulos. Certamente foi uma criança amada, mas nunca houve um interesse real pelo seu crescimento intelectual ou na sua formação como indivíduo. Era importante estar suprido e respeitar o próximo. Honestidade com certeza foi um valor agregado. Mas a verdade é que ele foi criado como uma planta. Sua opinião nunca teve importância, nunca lhe foi ensinado a pensar, questionar ou aprimorar-se para o futuro, fazendo do ambiente sua única referência.
A infância não foi nada fácil. Perdeu seu pai para a Diabetes aos quatro anos. Esse fato mudou sua vida completamente. Sua rotina de filho caçula transformou-se em ser o saco de pancadas do irmão mais velho e dos outros garotos da rua, longas horas da ausência da mãe, – agora coluna financeira da família –, até ser colocado num internato para meninos.
No internato havia muitas regras. Não era permitido bater nos outros meninos, estragar a comida, cada criança era responsável por suas coisas e, em sala de aula, falar era raro, a não ser com autorização da tutora, pois ninguém poderia falar ao mesmo tempo que outra pessoa. Tumultos, burburinhos e algazarras não seriam tolerados.
A vida no internato não foi fácil no começo. Sentindo-se sozinho e abandonado Dr. Oddaue ficou violento. Batia nas outras crianças, perdia suas roupas e objetos de higiene pessoal. Na verdade, notou que para cada ato de rebeldia o castigo era o isolamento, porém, no final de todo isolamento, sua mãe era chamada a vê-lo, na tentativa de amenizar a situação. Mesmo parecendo masoquismo, rebelar-se, ficar isolado e aguardar a visita “forçada” da mãe tornaram-se sua alegria e rotina por um bom tempo.
Os anos foram se passando. Dr. Oddaue não se lembrava de seu pai ou do viver em família. Demorou para se adaptar ao internato, mas conseguiu. Aprendeu a reprimir sua raiva e percebeu que a rotina era segura. Aprendeu que poderia escolher a melhor rotina para sobreviver. A repetição de ações comportamentais que agradavam as tutoras e a realização de tarefas era sua segurança de paz e tranquilidade.
O internato onde Dr. Oddaue crescera não tinha a preocupação com a educação intelectual dos internos. O importante era alimentá-los e mantê-los saudáveis até que seus familiares pudessem vir buscá-los. As crianças deixadas ali vinham de famílias com dificuldades financeiras. Era o caso de sua mãe que perdera o esposo, portanto também a renda principal, e não tinha quem cuidasse de seu filho menor enquanto precisava trabalhar. Nos finais de semana era permitida a visitação, mas a mãe do Dr. Oddaue, na maioria das vezes, só conseguia visitá-lo uma vez por mês, pois também trabalhava aos finais de semana. Estar sozinho na multidão tornara-se sua rotina – mesmo em meio a inúmeras crianças em situação igual ou pior que a sua, mesmo sentado à mesa, participando, observando o compartilhar das outras crianças com seus pais, mães e responsáveis – o sentimento de solidão era único e constante.
Estranhamente Dr. Oddaue percebeu que estar completamente adaptado aquela rotina lhe trazia segurança. Não mais se entristecia, pois se acomodou com a solidão, com horários das tarefas, com as próprias tarefas em si e com as poucas visitas da mãe. Havia um pensamento que o fortalecia: “a repetição é segurança para mim”. Se nada mudar é porque o dia vai terminar bem – uma pseudo certeza de que tudo continuará bem.
De repente sua mãe veio buscá-lo em definitivo. Estava radiante e tinha novidades...
– Filho você não precisa mais morar aqui!
Naquele momento Dr. Oddaue voltou no tempo. Lembrou-se de como era difícil viver sozinho em casa, sendo saco de pancadas do irmão e das outras crianças. Sua mãe esperava entusiasmo da parte do filho, mas a expressão no rosto do menino demonstrava algo que ela não entendia. A verdade é que aquele jovenzinho já estava marcado e traumatizado pela vida.
– Filho, você não ficou feliz?
A comunicação ainda não era o forte do Dr. Oddaue. Diversos pensamentos pairavam, gritavam, ardiam em seu interior, no entanto, ele não sabia como se expressar. Gritar e bater não eram opções naquele momento, pois sempre entendeu que sua mãe o amava e que suas opções eram poucas.
Sua mãe era uma mulher que ficara sozinha com suas crianças por um revés do destino. Precisava reconstruir sua vida a partir da sua situação de viúva. Também não era fácil para ela, estava lutando para sobreviver e criar seus filhos.
Mesmo sem entender a reação do filho, aquela mãe perseverou na euforia com o intuito de contagiá-lo e convencê-lo de que era o melhor e para o seu bem.
– Filho, estamos de mudança! E você vai gostar. Estaremos juntos na mesma casa. Imagine só! Um quarto só seu. Quer dizer... Inicialmente você terá que dividí-lo com seu irmão, mas a mamãe está se organizando e muito em breve, sim. Você terá um quarto só seu.
Para Dr. Oddaue o que a mãe via como solução ele enxergava como terror. A sua mente divagava entre seus piores dias antes e depois no internato. Como era possível seu cérebro reproduzir tão intensa e rapidamente aquelas imagens. Para interrompê-las, ele interpelava a si mesmo: “odeio mudanças ou não quero estar próximo do meu irmão? Eu odeio mudanças. Prefiro a segurança da rotina! Viver em família deve ser algo bom? O que é uma família? Será que existem mudanças boas? Por que não consigo falar mais alto que meus pensamentos?”.
– Filho, tem uma outra coisa que preciso te contar. A mamãe tem um namorado, na verdade nós estamos noivos. Logo, logo você vai conhecê-lo. Ninguém poderá substituir seu pai, mas daqui para frente nós quatro seremos uma família. Temos muitos planos. Casar e morar em um novo bairro. Começar do zero! Você vai amar, querido.
O turbilhão de pensamentos na consciência do Dr. Oddaue não cessava, pelo contrário, a essas alturas bradava. Apesar de jovem, sua vocação começava a aflorar. Embora ainda não conseguisse verbalizar seus pensamentos e anseios, por fora não passava de um menino. Ora rebelde, ora silencioso, quase sempre solitário e com o semblante triste, por dentro havia uma mente por demais barulhenta, marcada apenas pelas lembranças de momentos ruins. Para ele, era inevitável associar a mudança ao sofrimento. Enquanto sua mãe estava esperançosa, contava-lhe as novidades, Dr. Oddaue divagava: “Mudanças! Para quê? Por quê? Mudanças levam tempo” – lembrando-se do tempo que sofreu pela morte do pai e pelo o tempo que demorou para aprender a viver sob as regras do internato, sozinho e sem a mãe – foram momentos complicados. Vou conhecer meu padrasto? E se ele for mau? Preciso chamá-lo de pai? Não consigo mais lembrar do rosto do meu pai. Nesse caso, quer dizer que eu sou mau? Continuarei a apanhar do meu irmão e da turminha da rua? Ah! Não sei como falar o que sinto! Eu quero continuar aqui! Eu quero gritar, mas não consigo. Mãe, por favor, leia através dos meus olhos. A repetição é segurança para mim. Se nada mudar é porque o dia vai terminar bem – uma pseudo ilusão de que nada iria mudar, lhe trazendo a ingênua confiança que estar bem é viver dentro de uma rotina, seja ela qual for.
Mas a verdade é que tudo estava novamente uma bagunça. Não havia mais rotina e criar uma nova certamente levaria tempo. Muito tempo.
O agora estava acontecendo diante dos seus olhos e seu futuro era incerto. Inúmeras variáveis o impediam de criar, ao menos por hora, sua nova rotina. Sua mãe e os adultos a sua volta só falavam sobre um casamento para organizar, apartamento para comprar, novo bairro para conhecer, nova escola, novos colegas. Dr. Oddaue, entretanto, misturava todas essas atividades à permanente sentença: “E se lá for pior do que aqui? E se isso! E se aquilo!”.
Meados de 2017
O coração do Dr. Oddaue acelerou, suas mãos ficaram gélidas, úmidas, uma tontura se apoderou de seu corpo e, de repente, a campainha tocou. Envolvido naquele súbito mal-estar, despertou como que num instante, percebendo que tudo aquilo era passado e não passava de uma lembrança. Agora já era adulto e novamente “a mudança” batera em sua porta.
– Senhor D.! A Equipe da Live-Enjoy-Remind-Repeat já chegou. E o Senhor Mugles também.
– Diga-lhes para fazer o que vieram fazer. Quando terminarem falo com eles. Obrigado, Anne!
Dezembro de 1960
– Amor, o que você vai colocar aqui? Vamos! Não seja ranzinza! Memórias são importantes. Eu adoro relembrar de tempos em tempos as minhas aventuras.
– Não me programei para fazer isso hoje. Quebra completamente a minha rotina.
– Dr. Oddaue! Um dia você vai perceber que só temos o que vivemos e o que vivemos é o nosso tesouro.
– O sótão é um lugar tão frio e escuro. Tudo que eu colocar aí será esquecido e não lembrado.
– Vamos lá, Estranho. Não me diga que tem medo do sótão. Tenho certeza que existe alguma coisa que você queira guardar e daqui a alguns anos ver novamente. Talvez algo para compartilhar com seus netos. Onde está a criança que o habita? Não é possível que você não tenha nada que possa ser classificado como xodó da memória.
– Minhas memórias de infância não são agradáveis. Os vestígios da minha vida não são de todo felizes.
– Você não percebeu ainda. Estamos construindo algo novo. Juntos iremos aonde sequer imaginávamos ou podíamos fazê-lo, sozinhos. Eu vou fazer você esquecer a rotina e vamos colecionar um milhão de momentos. E esses momentos já começaram desde o dia em que nos conhecemos. Ainda que alguns deles sejam pontes para o passado, outros podem ser alavancas para o futuro. Por isso vou depositar aqui, por enquanto, minha flauta doce. Ela me lembra do meu primeiro desafio e da esperança de um futuro melhor. Memórias, Dr. Oddaue, nos fazem lembrar de fatos que nos trouxeram até o agora. E muitos dos fatos que eu quero lembrar, direta ou indiretamente me trouxeram até você. É possível que alguns objetos reflitam você materializando a infância, mas outros objetos, acrescentados posteriormente podem acabar fazer você reconstruindo a infância. Talvez você esteja acostumado a olhar do passado para o presente, mas em breve você vai olhar do futuro para o passado.
– Em outras palavras você está dizendo que “nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio”.
– Heráclito! Certo? Pense comigo. E não pode por um simples motivo. Pois, nem é o mesmo homem e muito menos o mesmo rio! As memórias, os momentos.... Eles são o nosso rio!
– Isso mesmo! Adoro quando você advinha minhas citações.
– Hahaha! Isso já virou um hobby para mim.
– Hummm. Já sei o qual será o primeiro objeto que colocarei aí.
– Maravilha! Vamos fazer desse hábito nossa tradição. Não há regra, periodicidade ou limitação. Um dia relembraremos juntos dos momentos que construímos.
Quando Dr. Oddaue se casou comprou uma casa grande com porão e sótão, além dos demais cômodos, é claro. Estes, no entanto, nunca foram do seu interesse. Mas sua esposa se apaixonou por eles desde que os viu. Por mais que visitassem outros imóveis, este, em particular não saíra de sua memória...
O porão foi transformado numa sala de pintura equipada, misturada com um tipo de biblioteca. O espaço quase que dividido meio a meio. Uma vitrola ao lado da poltrona clássica, confortável e grande, ideal para leitura. A estante de parede que se erguia do chão até o teto dava uma profundidade ao ambiente. Nela havia alguns livros e discos, porém ainda dispunha de espaços vazios para preencher. Estes seriam acomodados à medida que o casal fosse lendo futuros livros e adquirindo novos discos.
A esposa do Dr. Oddaue adorava ler, escrever, pintar e ouvir música. E ele adorava estar onde ela estava. Adorava observá-la. Com o tempo, o gosto de sua esposa para a arte, a música erudita e a literatura foi embriagando o Dr. Oddaue e o casal passava mais tempo no porão que nos outros cômodos da casa. Ali era seu mundo particular.
Julho de 1960
– Meu amor, alegre-se! Somos proprietários de uma residência com porão e sótão. Não é fascinante!?
– Mulher! Nunca vi alguém tão feliz por causa de um porão e um sótão. A maioria das mulheres vibraria pela cozinha, quartos e sala de jantar.
– Dr. Oddaue, Dr. Oddaue, eu não sou como as outras mulheres.
– Ahhh! Mais disso não há a menor dúvida!
Março de 1960
Dr. Oddaue morava sozinho no alojamento dos estudantes e gastava seu tempo entre as aulas de direito e as leituras na biblioteca da faculdade. Suas poucas atividades estavam voltadas para a sua vida acadêmica, pois não tinha o interesse no lazer e espontaneidade da vida, inclusive, carregava para onde fosse uma agenda organizada com suas atividades regulares. Era um diário de adolescente, com todos os seus horários, que trazia consigo desde então. Uma espécie de guia que lhe mostrava o norte da segurança. Em obediência ao seu Guia, religiosamente, todos os dias às 18 horas, Dr. Oddaue cruzava o campus em direção ao alojamento dos estudantes. Mas, nesse dia em particular, algo aconteceu. Dr. Oddaue se perdeu no tempo preso em suas leituras e pesquisas. Quando olhou no relógio decidiu apressar-se, apesar de a ninguém devia satisfação. Sua obsessão em manter-se na rotina o impelia a resmungar: “Se correr, chego ao alojamento antes das 19 horas. É isso! Poderia correr em vez de andar. Eu consigo! Está resolvido”.
Se alguém tem o controle de tudo, não somos nós meros mortais. Se alguém tem o controle de alguma coisa, esse alguém é o Sr. Destino. E para ele, a pressa é apenas uma desculpa para a realização de suas peripécias.
A biblioteca da Universidade estava prestes a fechar, quando uma jovem esbaforida surge no contra fluxo e por causa da pressa, esbarra com Dr. Oddaue. Ambos caem juntamente com seus pertences no chão.
Tagarelante, ela diz:
– Perdão! Que falta de atenção a minha. Eu e a mania de estar sempre correndo. Oi. Meu nome é Heloísa. Olha, eu sinto muito mesmo, mas preciso pegar um livro antes que a biblioteca feche. Tchau! – E sorrindo se foi.
“Que furacão foi esse? Pensou Dr. Oddaue. E aquele sorriso?”, continuava ele a divagar. Preciso dizer alguma coisa – pensou Dr. Oddaue. “Mas o quê?”, gritou mentalmente para si mesmo. Então bradou para que ela pudesse ouvir:
– “A pressa gera o erro em todas as coisas”, Heloísa!
E imediatamente levou as mãos à boca enquanto sua mente novamente gritava consigo: “Meu Deus. Que absurdo é esse! Isso não estava na minha rotina! Se ao menos eu pudesse ter me preparado para dizer algo melhor”.
De repente, Heloísa grita de volta – “Heródoto! Mas eu prefiro ‘a pressa é inimiga da perfeição’”.
Parecia insano, mas seus lábios foram mais rápidos que a parte consciente de seu cérebro. Instintivamente respondeu – “Rui Barbosa, O Águia de Haia!”
–Isso mesmo, Estranho. Tchau!
Na correria Heloisa não percebeu que esquecera seu cachecol, no chão, junto às coisas do Dr. Oddaue. Seu cheiro estava nele. Era suave e intenso como o aroma das flores na primavera. A fragrância era novidade para o olfato do Dr. Oddaue. Intrigado com aquele cheiro inebriante e insistente apesar da brisa gelada do inverno, logo tratou de se organizar e voltar a correr. A qualquer momento Heloísa passaria por ali novamente e ele não teria o que lhe dizer. Sua mente teimava em questioná-lo: “Será que irei vê-la novamente? O que poderia eu dizer aquela mulher! Tão viva, tão sagaz! Praticamente uma força da natureza”.
Meados de 2017
– Senhor D.? Está com frio?
– Não. Por quê?
– O senhor está segurando um cachecol.
– Minha jovem Anne... O que está fazendo aqui em cima?
– Ah! É. Eles têm perguntas!
– Eu sei, mas eu preciso de mais tempo. Só mais um pouco de tempo! E esse tempo eu quero gastá-lo aqui. Diga-lhes que podem esvaziar a casa. E quando terminarem, Mugles fará a vistoria. Só depois disso eu sairei. Quanto às minhas malas, podem colocá-las no carro, por favor. É um Uber. Sempre aguardam o tempo que for necessário sem reclamar. Por isso mesmo não chamei um taxi.
Dr. Oddaue era uma pessoa solitária. Chegara ao término da vida acadêmica praticamente sem amigos. Seu relacionamento com a família estava restrito ao básico. Havia um sentimento mútuo de amor, que estava restrito ao campo do sentir e não do demonstrar. Seu padrasto sempre lhe tratara bem, sua mãe de fato fizera um bom casamento, no entanto havia uma distância de ambos – Dr. Oddaue e seu padrasto – por falta de habilidade no diálogo. Se perdiam em conversas monossilábicas até serem vencidos pelo silêncio. Já o seu irmão superou a raiva do mundo adquirida com a morte do pai, fazendo-o inclusive, descontar no Dr. Oddaue. Mas este também não desenvolveu habilidade para conversar. Nas épocas que se reuniam, praticamente só sua mãe falava.
Dr. Oddaue foi forçado pelas circunstâncias a perder muito tempo quando criança. Repetiu algumas séries e mesmo que estivesse atrasado na idade adquiriu gosto pelos estudos. A rotina lhe deixava tranquilo. Algum tempo depois do casamento de sua mãe finalmente conseguiu oportunidade para estudar numa boa escola, a adaptação não foi fácil. O tempo passou voando e Dr. Oddaue o gastou na escola, na biblioteca a conversar com seus livros, quase nunca em casa e quase sempre sozinho. Ao chegar à universidade, todas as regras comuns a um acadêmico lhe foram fascinantes. Inebriado com acesso ao conhecimento e a rotina que a muitos era difícil, achava fácil absorver esse hábito. Quebrá-la era algo penoso; mantê-la era seguro.
Como Dr. Oddaue mudou-se para o alojamento da Universidade quase que imediatamente após a matrícula, raramente via seus familiares, a não ser nos feriados nacionais. Sua mãe até cogitou tê-lo em casa novamente após o término da graduação, mas seu pensamento foi frustrado ao saber que o filho daria sequência aos estudos. Aos poucos, Dr. Oddaue foi ficando mais distante da sua família, que por sua vez não questionava muito, visto que não eram dados a grandes demonstrações de carinho e muito menos a discursos emotivos. Eram, na verdade, pessoas muito caladas. Em certa ocasião, seu padrasto mencionou, em curtas palavras, que o homem está seguro quando tem um teto em seu nome, pois não importa para onde o vento sopre ou se viajar o mundo. Se ele tiver um teto para chamar de seu, sempre terá para onde voltar. Tendo dito isso deu-lhe uma boa quantia em dinheiro e finalizou dizendo: “No tempo oportuno, compre sua casa”.
Junho de 1960
– Olá, Estranho!
– Três meses.
– Não entendi?
– Desculpe-me. É que de repente lembrei que já se passaram três meses que você me atropelou.
– Boa memória a sua, hein?
– Não está com pressa hoje, Heloísa?
– Hummm. Você se lembra do meu nome.
– “Tudo que a memória amou já ficou eterno.”
– Adélia Prado!
– Isso mesmo.
– Hahaha! É assim que você paquera as moças, Estranho?
– Me desculpe. Falei sem pensar.
– Você não vai me dizer seu nome? Ou da mesma forma que acerto as citações que você diz, Estranho é realmente seu nome?
– Meu nome?
– Sim, Estranho! Hahaha. Você não acha estranho eu te chamar de Estranho?
– Na verdade, não. Fica bonito na sua voz.
– Estranho. Muito estranho, Estranho.
– Me desculpe. Meu nome é Dr. Oddaue.
– E você é doutor em quê?
– Na verdade, ainda não sou doutor em nada. Esse é meu nome mesmo. Meu pai escolheu assim. Mas não sei o motivo.
– Então pergunte a ele, oras!
– Ahhh já pensei nisso diversas vezes, mas infelizmente ainda não descobri como falar com os mortos.
Os dois gargalharam juntos. Conversaram horas e horas como se fossem íntimos. Não perceberam o tempo passar. Na verdade, a sensação que tiveram foi como se já se conhecessem há muitos anos. Dr. Oddaue se esquecera de seus compromissos durante aquela tarde e ao se despedirem era inevitável a ansiedade do reencontro.
– “Quando me for, levarei um pouco de ti e deixarei um pouco de mim.”
– Sir Charlie Chaplin.
– Você não erra uma!
– Seus olhos me dão a resposta!
Depois daquele dia era como se nunca mais se separassem. Mesmo não estando juntos física e geograficamente, era como se estivessem.
Dr. Oddaue e Heloísa se apaixonaram. Há quem diga que se reencontraram. Um ajudou o outro nas dificuldades emocionais que cada um carrega ou desenvolve ao longo da vida. Sempre que Dr. Oddaue se perdia pelo caminho das emoções ou tardava em atitudes, Heloísa o ajudava a voltar para a realidade. Sempre que Heloísa duvidava que algo pudesse acontecer, Dr. Oddaue fazia acontecer.
Nesse ritmo intenso vinte dias já era muito tempo. O suficiente para Dr. Oddaue saber que jamais estaria sozinho no meio da multidão novamente. Tempo suficiente para convidar Heloísa para morar com ele. E juntos saíram para procurar um ninho, um canto, um lar. Um mundo só deles. Em julho, eles já moravam juntos. Um choque para muitos. Heloísa não se preocupava muito com isso e a família de Dr. Oddaue basicamente não opinou, ainda que sua mãe tenha ficado feliz por ele.
Meados de 2017
– Heloísa? Onde você está?
– Eu estou aqui, Estranho.
– Quero te mostrar uma coisa. Lembra daquele baú que você vivia me pedindo para colocar nossas memórias? Eu quero compartilhá-las com você!
– Sim, eu me lembro. Nós nunca mais viemos ao sótão juntos depois daquele dia em que iniciamos a tradição. Eu sei que você veio aqui inúmeras vezes. Não é se espantar que fomos preenchendo o baú e nunca conseguimos tempo para rememorar.
– Lembra-se desse cachecol azul? Foi o dia que nos conhecemos. Nunca o devolvi. Foi a primeira peça que coloquei no baú.
– Impossível me esquecer daquele dia.
– Lembra-se da sua flauta? Você tocava quando sentia saudades da sua mãe.
– Tocava sempre a mesma melodia. Sons desordenados que ornavam com uma orquestra imaginária.
– E essa embalagem de Ovomaltine?
– Foi quando descobri que o leite poderia ser gostoso, mas que o excesso de chocolate podia provocar uma forte diarreia.
– É verdade! Você não gostava de leite. Eu te trouxe um “pozinho mágico” que com certeza mudaria seu conceito sobre o leite. Heloísa você gostou tanto que consumiu demais. Hahaha! Quase não viajamos aquele final de semana. Você até perdeu peso.
– Olha só! Você guardou a boneca negra de cabelos louros que lhe dei em Johanesburgo.
– E como não guardar? Ela marcou uma época muito difícil da nossa vida. Foi nossa primeira viagem depois que soube que não poderia ter filhos. Quase estraguei nossas férias decepcionada comigo mesma. Mas você não me deixou esquecer o motivo principal de estarmos juntos.
– Nascemos para completar um ao outro. Você preenche os meus dias e eu os seus. Lembra!?
– Hahaha! Nos perdemo-nos um do outro no museu e, como eu estava com aquela boneca a tiracolo o tempo todo, uma criança trouxe você até mim. E ela dizia:
– Die meisie pop ouma.
– Die meisie pop ouma.
– A moça da vovó boneca.
– A moça da vovó boneca.
– Aprendi a andar de bicicleta com você. Se fechar os olhos posso sentir a brisa do vento no meu rosto e o cheirinho do mar. Foi tudo junto e de uma vez só. Com você é tudo tão intenso. A bicicleta não existe mais, mas a corrente está aqui. Incrível. Só de tocar nela é como se eu voltasse no tempo.
– Confesse. Essa minha mania de guardar tudo aqui lhe pareceu estranha a vida inteira, não foi?
– Estranho, não. Diferente. Você era diferente.
– Por exemplo. Você pode me explicar o que são essas sementes de melancia?
– Ahhh! Antes de conhecer você, eu já fui jovem. Aos 12 anos tive catapora. Fiquei presa em casa porque não podia sair para ir à escola ou brincar. Como naquele ano eu também tivera pneumonia, sorvete, que era meu desejo, estava fora de cogitação. Por estar irritada com as coceiras e a medicação me tirava o apetite, meus pais me deram melancia. Café da manhã, almoço e jantar. Como estava entediada, guardei as sementes.
– O cavalo preto do peça de xadrez. Aquele dia foi memorável. Realizei o meu sonho de estar em Moscou e ver Garry Kasparov tornar-se campeão mundial de xadrez aos 22 anos. Você descobriu a vodca. Era 9 de novembro de 1985. No final do evento tivemos a sorte de encontrar com ele muito rapidamente. Alguém ao lado de Kasparov carregava as peças do jogo usadas naquele combate. É fato que você já estava levemente entediada e propositadamente esbarrou com intuito de derrubar tudo no chão.
– Hahaha! Eu me lembro. Nunca gostei de xadrez, mas sabia que aquele dia era importante para você. A verdade é que estava muito entediada. Mas por amor o tédio torna-se um crime. E o que estava chato transformou-se numa engraçada lembrança. Foi assim que roubei a peça cavalo preto. Vodca é vida!
– Sinto falta do seu feijão, sabia? Aquele caldinho temperado e apimentado. Impressionante como a maioria das pessoas erra no sal. Você errava na pimenta. Não imaginava que essa concha amassada estaria aqui. Mas se eu respirar fundo posso sentir o cheiro e gosto do seu caldo de feijão e minha língua ainda arde com furor da pimenta.
– Trouxe essa concha para cá quando o médico nos proibiu de comer feijão. Regalias da idade eu imagino.
– Dobraduras! Até aqui Heloísa!
– Oras! Dobraduras, sim senhor. Admita. São um excelente passatempo.
– Sim, eu admito. Quebrar a perna não foi um momento legal. Fiquei muito deprimido na época. Reclamava de tudo. Não conseguia andar e para mim tudo estava péssimo. Então, você me ensinou a fazer dobraduras. Me mostrou o passo a passo dos modelos principais. No começo eu odiava. Sua estratégia foi conversar na base do suborno. Para cada dobradura um bate papo. Para cada dobradura um carinho. Para cada dobradura um sorriso seu.
– Estão aguardando você lá em baixo. É hora de viajar e deixar para traz o velho sótão, Estranho.
– “A verdadeira viagem se faz na memória. ”
– Marcel Proust!
– Após todos esses anos ainda fico chocado. Você acerta todas as vezes.
– Já lhe disse. Os seus olhos me dão a resposta.
– Ainda há tempo para mais uma viagem?
– O que esses carrinhos de madeira lembram?
– Eu era criança, meu pai ainda era vivo. Fazíamos carrinhos de madeira juntos. Depois que ele morreu, brincar com madeira, mesmo que fosse madeira sem forma, era a única lembrança que eu tinha dele.
– A memórias são pontes que nos levam às portas. Essas portas são histórias que refletem as janelas da nossa alma. Mesmo que você não tenha os objetos consigo, ninguém poderá lhe tomar as memórias.
– Heloísa. Ainda tem o pássaro de resina, a caderneta, o ursinho Pooh, a caixa de Bis...
– Eu sei que ainda tem muito mais coisas. Todas elas são a trajetória de vidas dentro de um baú de memórias. Para onde seu coração for suas memórias irão contigo.
– Não posso ir sem seu baú, Heloísa.
– Claro que pode. Meu baú estará sempre com você. Meu baú é o seu coração. Guardei tudo nele. Muito mais do que falamos hoje. Eu guardei nele a história da nossa vida.
De repente, Anne, a cuidadora entra no sótão acompanhada de Mugles, o corretor imobiliário.
– Senhor D., o senhor Mugles já fez a vistoria, seu advogado senhor Benson trouxe a papelada. Só falta sua assinatura. Todos os seus bens, incluindo essa casa serão vendidos e transformados em fundos para mantê-lo bem e amparado na casa de repouso Live-Enjoy-Remind-Repeat. Esse era o desejo da Dona Heloísa. Tudo bem? Hoje é um dia de mudança.
– Mudança para algo melhor, Dr. Oddaue – completou Mugles que conhecia o casal há anos.
Senhor Benson os conhecia há anos e estava emocionado, mas não hesitou em dizer: “É hora de fazer novas lembranças Dr. Oddaue. Esse era o desejo da Dona Heloísa. Lembra!?”
O casal sempre teve um testamento pronto, para o caso de emergência. Mas esse testamento perderia validade caso completassem 50 anos de casados. Assim como quando se apaixonaram, colocaram o futuro um do outro em suas mãos. Como foi no começo, seria no fim.
Esse tipo de ansiedade, agonia e introspecção reflexiva sempre se apoderava do Dr. Oddaue quando “as mudanças” inesperadamente aconteciam... Mesmo que programadas...
Não havia mais tempo. Dr. Oddaue assinou os papéis fez menção de que iria sair. Todos foram saindo lentamente e ele também, porém por último e caminhando lentamente. Parou na porta do sótão, voltou-se para trás, olhou para o baú e chorou. Não resistindo falou:
– “O que passou, passou, mas o que passou luzindo, resplandecerá para sempre.”
Não houve resposta. Um cálido silêncio o acompanhou pelas escadas, pela sala, pelos quartos. Todos estavam lá fora a sua espera. Inclusive o motorista do Uber! Dr. Oddaue disse que iria até o porão, mas não se demoraria. Ao chegar lá deparou-se com os melhores momentos da sua vida. Sim, eles viajaram, conheceram pessoas, acompanharam as mudanças climáticas, econômicas e comportamentais do mundo a sua volta. Mas ali, naquele porão, ele não era o Juiz obcecado por normas e rotinas. Ela não era outra coisa a não ser ela mesma.
– Heloísa?
– Goethe!
– Sabia! Você não erra!
– Tenho uma citação para você.
– “Lembre-se, é fácil esquecer para quem tem memória, difícil esquecer para quem tem coração...”
– Hummm. Não lembro!
–Estranho, é hora de dizer adeus a este lugar. É hora de construir novas Memórias e Histórias. Você ainda tem tempo. Te amo.
– Até logo, Heloísa!
Sr. Oddaue partiu para casa de repouso Live-Enjoy-Remind-Repeat.
Lá viveu até completar 100 anos.
– Estranho?
– Heloísa!
– Lembra-se da última coisa que eu te disse?
– “Lembre-se, é fácil esquecer para quem tem memória, difícil esquecer para quem tem coração...”
– Gabriel Garcia Marquez!
– Ah! Essa é a minha garota. Que saudade!
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