Projeto Escrevivendo



Roteiro Sentimental 

Foi com sensação de felicidade que atravessei a avenida Brigadeiro Luiz Antonio domingo cedo. Ninguém, nenhum carro, nenhum cachorro latindo, ambulância uivando ou fila de ônibus agonizando. Coloquei o pé na calçada, depois na rua, e tentei calcular as camadas de asfalto que estão por cima dos paralelepípedos, os mesmos que viravam barras de sabão e lambiam os pneus dos carros que tentavam subir a ladeira em dias de garoa. Sim, São Paulo era conhecida por sua garoa fina e gelada. Pude sentí-la.

Todos os dias, exatamente ao meio-dia, meu pai subia a avenida no seu Aero Willis prata, carro brasileiro com motorzão de jipe e lataria pesada, tentando ser “de luxo”. Ele dirigia até a Rua Boa Vista 176, entrada lateral do Banco do Estado de São Paulo, onde foi funcionário por 38 anos. Daí, minha mãe assumia a direção e me deixava na Praça da República, no Instituto de Educação no Caetano de Campos. Dos 5 aos 17 anos, aquele prédio neoclássico projetado por Ramos de Azevedo foi minha segunda casa e era considerado um centro de excelência educacional. A praça era arborizada, havia lagos com patinhos e peixes, e até um bicho preguiça. Do outro lado, uma Kopenhagen. Eu fugia da escola para comer nha benta e batatinhas de marzipan.

Nas férias, eu e minha mãe ( de luvas brancas de crochê e salto alto) íamos fazer compras na cidade e tomar chá no Mappin, em frente ao Teatro Municipal. Depois, atravessávamos o Viaduto do Chá para comprar sapatos na rua Quintino Bocaiúva e, na volta, tomávamos o ôninus Paraíso no Vale do Anhangabaú. Vínhamos sentadas.

No ginásio, eu e minhas amigas íamos fazer pesquisa na Biblioteca Mario de Andrade andando pela rua São Luiz, passando por butiques, pela agência da Luftansa e admirando as entradas clássicas dos edifícios elegantes. Nos tempos da escola normal, íamos comer èclairs na doceria Dulca na rua do Arouche, e admirar as vitrines de sapatos. Imaginávamos como seria maravilhoso um dia sair para jantar com o namorado no restaurante O Gato que Ri. Cabulávamos aula para ir ao cine Metrópolis onde o porteiro fingia acreditar que nossas carteirinhas de estudante não eram falsificadas e depois comer esfiha no Almanara da rua Basílio da Gama.

Ainda na garoa, no meio da Brigadeiro, quando me dei conta estava olhando para o céu encoberto e rindo de mim mesma. Embalada pelas lembranças, decidi pegar a Alameda Sarutaiá e logo vi alguns cães, que são os atuais seres dominantes do bairro, eu acho, pois usavam roupas coloridas, acessórios de cabelo, capa de chuva e sapatos ( quatro). Arrastavam seus escravos que iam recolhendo, em saquinhos plásticos, suas fezes quentes.

Cruzei a Alameda Campinas, a rua Pamplona e atravessei a Nove de Julho. Lembrei do túnel antes da construção do MASP. Cheguei à Rua Augusta, hoje feia e decadente, caminhei até onde era o cine Paulista, das matinês de domingo, do cachorro quente depois do filme, ou sorvete de creme com “ hot fudge nuts”. Das garotas de mini-saia e dos rapazes de calça Lee. Na Oscar Freire, parei em frente à lanchonete Frevo. Depois, subi a Augusta até a Paulista, entrei no Conjunto Nacional. Onde está hoje a livraria Cultura, era o espetacular Cine Astor. Lembrei da minha melhor amiga, quando voltávamos para casa a pé.

Continuei andando, sentindo o frio no rosto, só que não fui até a Rua Sampaio Viana onde eu morei tantos anos, nem na praça Oswaldo Cruz, ou o que restou dela, sem o chorão, sem a Sears e com o desprestigiado índio fora do lugar. Virei à direita na Brigadeiro.

Em contagem de chronos, foi mais ou menos uma hora e meia. Em contagem de kairós... bem kairós é o tempo oportuno, que não se sente passar. Foram décadas, uma vida inteira, ou apenas alguns segundos.

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Tags: almeida, escrevivendo, escrita, guilherme, leitura, oficina

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