O lugar da literatura na educação[1]
Por Yolanda Reyes
I. Literatura para além das definições
Costuma-se dizer que a literatura é a “arte que emprega como meio de comunicação a palavra falada ou escrita”. Diz- se também que ela é o conjunto de obras literárias de uma nação, de uma época ou de um gênero”. Começo descrevendo essas típicas definições de dicionários escolares para me referir a uma crença, ainda vigente em nossas práticas e currículos acadêmicos, segundo a qual o que se deve saber de literatura é muito daquilo que sobra e pouco daquilo que basta: ou seja: definições e rótulos. “ O dever antes da vida”[2], como disse um de nossos homens ilustres. Primeiro, a letra morta; depois, quando tivermos aprendido o bastante, e se for o caso, virá o prazer... O problema é que depois pode ser demasiado tarde. A literatura, assim ensinada, não costuma dar segundas oportunidades.
Em seu Curso de literatura europeia, Vladmir Nobokov[3] disse que “tudo o que vale a pena é, de certo modo, subjetivo”. E esse é o problema para o qual gostaria de chamar a atenção daquele que leem estas páginas. Em nosso contato escolar com a literatura, todos nós tivemos a oportunidade de aprender um sem número de dados, datas, listas de obras e autores. E, infelizmente, com essa aprendizagem, incorporamos também uma lição não tão explicita quanto as definições do dicionário, mas provavelmente tão contundente quanto: a linguagem é uma espécie de retórica oficial; uma retórica alheia à vida e às palavras que nos constituem – as palavras subjetivas e emaranhadas com que expressamos nossa experiencia vital.
As manifestações dessa lição começam a ser vistas com clareza desde os primeiros anos da educação primária e costumam se consolidar ao longo da educação secundária. Os diversos tipos de escritos produzidos pelos alunos são testemunhas do divórcio entre literatura e vida: de um lado, os diários íntimos, as notas e os bilhetes com mensagens de amizade ou amor trocadas pelos jovens, as letras das canções da moda, os papeizinhos que circulam clandestinamente durante as aulas e aos quais agora se unem outros, que vão à velocidade do Messenger. De outro, indiferente, segue fluindo o jargão oficial: o resumo do livro, a redação insossa sobre as férias, as análises literárias e até os contos escritos a pedido do professor, que raras vezes conseguem se afastar do estereótipo e ir em busca de uma voz interior para expressar emoções verdadeiras. A máscara da linguagem escolar serve quase sempre para nos encobrirmos e quase nunca para nos revelarmos, a nós mesmos ou aos outros.
É como se existissem duas linguagens paralelas ou, pior ainda, dois mundos paralelos. (De novo, voltamos às definições escolares: “Linhas paralelas são aquelas que, por mais que se prolonguem, nunca chegam a se encontrar”.)
Talvez por isso as férias sejam uma coisa e a redação sobre elas, outra, muito diferente. Provavelmente por isso também um aluno pode passar anos inteiros escrevendo dia após dia para o mesmo professor sem que nenhum dos dois consiga, por meio da escrita, estabelecer uma conexão pessoal. Assim, todos, alunos e professores vão se resignando a trocar palavras vazias, definições de dicionário, com significados “objetivos”, assépticos, livres de equívocos e suficientemente gerais para evitarmos o trabalho de algo pessoal.
Se existisse um dicionário no qual nos dissessem o que não é literatura, seguramente descobriríamos que literatura não é o argumento, nem os personagens, tampouco os significados que lemos. Além disso, tudo parece indicar que as definições pouco ajudam quando se quer aprofundar de verdade um tema, sem a urgência de fazer uma prova escolar. O poeta Rainer Maria Rilke[4], que passou a vida lendo e escrevendo, nos diz que:
[...]as coisas não são todas tão compreensíveis nem tão fáceis de se expressar quanto geralmente nos fizeram crer. A maioria dos acontecimentos são inexprimíveis; ocorrem no interior de um recinto no qual jamais palavra alguma adentrou. E mais enexprimíveis do que qualquer outra coisa são obras de arte.
Poderíamos continuar tecendo essa conversa com escritores de épocas e lugares distintos até nos depararmos com uma dolorosa certeza; não é fácil escrever, nem expressar- se, tampouco traduzir em palavras um mundo interior para comunicar a outros seres humanos, que têm, por sua vez, mundos interiores próprios, uma mínima parte do que queremos. E, do mesmo modo, pode não ser fácil para o leitor penetrar nesse mundo de palavras, nessas marcas deixadas por outro em um papel depois de um processo de criação árduo e complexo. De onde surgiu, então, esse consenso escolar que obriga todos a sublinharem a mesma coisa em um mesmo parágrafo de um conto, a entenderem rapidamente as mesmas ideias principais e a enxergarem todas as obras a partir de um mesmo ponto de vista? De onde surgiu este desprezo que a educação nutre pelo subjetivo, o inefável, pelo que não pode ser definido nas linhas de um dicionário?
Atrevo-me a pensar que há um pouco de arrogância nesse equívoco. Porque, em nossa concepção de ensino, pede-se ao professor que seja capaz de controlar, planificar e avaliar o processo de aprendizagem durante todas as etapas, do princípio ao fim, sem que nada fuja ao controle. Essa concepção, herdada da tecnologia educativa, supõe que, quanto mais a curto prazo forem os objetivos que se proponha um professor e quanto mais se materializem em indicadores concretos, mais fáceis serão de ver, comprovar e avaliar em termos quantitativos tais objetivos. De alguma maneira, a “eficácia” do professor ainda é estimada em função do quanto de aprendizagem conseguem demonstrar que seus alunos obtiveram. O que não é visível, mensurável e observável não dá pontos. O que sai da resposta esperada, não vale. O que se passa fora da classe não conta. Os processos que se concluem depois de finalizado o ano letivo ou as revelações que vão surgindo paulatinamente a um ser humano, ao longo de uma vida, graças, talvez, à influência de um bom professor ou ao encontro com um livro definitivo não se qualificam.
Se já esboçamos que a literatura trabalha com toda a experiência vital de um ser humano – e não só com o pedacinho que se pode medir -, podemos imaginar quão pouco essa linguagem representa para um sistema pedagógico baseado em perguntas fechadas do tipo “ múltipla escolha”. As provas do PISA, que o mundo todo conhece e que fazem tremer os professores, são um exemplo típico dessa concepção de literatura retomada do dicionário. O pior dos leitores poderia escolher o item “certo”, ao passo que Rilke, com todas as suas dúvidas e incertezas, não chegaria a um “aceitável”.
II. Casas de palavras
Pensemos, por um instante, na essência da linguagem literária e trataremos de situa-la no contexto mais amplo da comunicação humana. Cada um de nós possui uma língua determinada para expressar seu mundo interior e para se relacionar com os outros. Em nosso caso, pertencemos à comunidade linguística que fala castelhano, que por sua vez tem um código próprio, um sistema de signos que permite a todos os falantes nomear, com certos rótulos, algumas imagens mentais ou alguns significados determinados. Isso garante que possamos compartilhar, de certa forma, um código comum. De fato, se escrevo casa, posso ficar segura de que todos vocês, que compartilham o uso da mesma língua, evoquem em sua mente o conceito de casa. Todavia, nenhuma das imagens mentais que vocês formarem corresponderá ao significado standard do dicionário. Haverá mansões, apartamentos ou casas de campo; algumas serão grandes e outra, pequenas. Muitos irão mais longe e associarão a palavra a um cheiro particular, a certa sensação de segurança ou de calor do lar, a uma saudade ou a seus próprios segredos. E isso ocorre porque todos nós vivemos em casas distintas.
Vamos nos valer dessa imagem para ilustrar nossa relação com a língua; casa um constrói sua própria casa de palavras. Temos um código comum, digamos que são os materiais e as especificações básicas. Mas cada ser humano vai se apropriando do código por meio de suas próprias experiências vitais e costuma produzir seus significados para além de um dicionário, mediante uma trama complexa de relações e de histórias. Assim, sob os rótulos, a linguagem que habitamos oculta zonas privadas e pessoais. Junto a essas zonas iluminadas existem grandes zonas de penumbra.
Que significado tem tudo isso para o ensino da literatura? Nada mais nada menos do que o reconhecimento dessas zonas. Procuremos entender: ler um manual de instruções para instalar um forno não é o mesmo que ler um poema, e se a escola não se dá conta dessa sutileza continuará ensinando a ler todos os textos a partir de uma mesma postura.
É certo que, para ligar um forno, devem ser seguidas, de maneira literal e obediente, alguns passos, pois, do contrário, pode haver um curto-circuito. Entretanto, é igualmente certo dizer que, no caso do poema, são a liberdade do leitor e, de certa forma, sua desobediência ao sentido literal das palavras que lhe permitem “ compreendê-lo” em toda a sua dimensão. Embora em ambas as leituras falemos em compreender, o tipo de compreensão que se estabelece é muito distinto. Para entender o poema, é preciso conectá-lo a sensações, emoções, ritmos interiores e zonas secretas> se não nos permitirmos explorar essas zonas de penumbra e ambiguidade da linguagem, esse poema não nos dirá nada. Assim, responderemos qual é seu tema ou quando nasceu seu autor, e identificaremos se tem rimas assonantes nos versos pares.
Apesar de essas duas leituras compartilharem muitas palavras e signos, á algo nelas que nos faz, como leitores, entrar em dinâmicas diferentes. E a escola, que fique claro, deve ensinar a ler de todas as formas possíveis e com diversos propósitos, pois precisamos seguir instruções cada vez mais complexas, não só para instalar um forno, mas para que uma espaçonave possa decolar e explorar lugares remotos, por exemplo. Porém, também necessitamos, e cada vez com maior urgência, explorar o fundo de nós mesmos e, a partir dessa região, nos conectarmos com os outros, iguais e diferentes, que compartilham conosco as raízes humanas. Tal como, algumas vezes, temos de ser obedientes ou literais, e outras necessitamos analisar com exatidão textos científicos e acadêmicos, da mesma forma precisamos de ferramentas para fazer leituras livres e transgressoras.
Ao indagar a fundo essa “casa de palavras”, a literatura deve ser lida – vale dizer: sentida – a partir da própria vida. Quem escreve deve estrear as palavras e reinventá-las a cada vez, para lhes imprimir sua marca pessoal. E quem lê recria esse processo de invenção para decifrar e decifra-se na linguagem do outro. É esse o processo complexo que implica, para dizer o mínimo, dois sujeitos, com toda a sua experiencia, com toda sua história, com suas leituras prévias, com suas sensibilidades, com sua imaginação, com seu poder de situar-se para além de si mesmos. Trata-se de uma experiencia de leitura complexa e, deve-se dizer, difícil. Mas passível de ser ensinada. E, para ensiná-la, convém partir de sua essência.
Caberia, então, promover uma pedagogia da literatura que desse vasão à imaginação dos alunos e ao livre exercício de sua sensibilidade, para impulsioná-los a serem recriadores dos textos. E, aqui, falo de recriar no sentido de reconstruir o processo criador. Isso implica reconhecer um caminho seguindo as pegadas do outro. Talvez por isso continue sendo mais fácil ensinar a repetir, a memorizar e a copiar da enciclopédia do que promover o surgimento da voz própria de cada aluno.
III. o que a literatura pode ensinar
Nossas crianças e jovens estão imersos em uma cultura de pressa e tumulto que os iguala a todos e que os impede de se refugiar, em algum momento do dia ou, inclusive, de sua vida, no profundo de si mesmos. Daí que a experiencia do texto literário e o encontro com esses livros reveladores que não se leem com os olhos ou com a razão, mas com o coração e o desejo, sejam hoje mais necessários do que nunca como alternativas para que essas casas interiores sejam construídas. Em meio à avalanche de mensagens e estímulos externos, a experiencia literária brinda o leitor com as coordenadas para que ele possa nomear-se e ler-se nesses mundos simbólicos que outros seres humanos construíram. E embora ler literatura não transforme o mundo, pode fazer ao menos habitável, pois o fato de nos vermos em perspectiva e de olharmos para dentro contribui para que se abram novas portas para a sensibilidade e para o entendimento de nós mesmos e dos outros.
Precisamos de histórias, de poemas e de toda a literatura possível na escola, não para sublinhar ideias principais, mas para favorecer uma educação sentimental. Não para identificar a moral da história, ensinamentos e valores, mas para empreendermos essa antiga tarefa do “conhecer-te a ti mesmo” e “conheça os demais”. O objetivo fundamental de um professor é o de acompanhar seus alunos nessa tarefa, criando, ao mesmo tempo, um clima de introspecção e condições de diálogo, para que, em torno de cada texto, possam ser tecidas as vozes, as experiencias e as particularidades e cada criança. De cada jovem de carne e osso, com seu nome e sua história.
Um professor de leitura é, simplesmente, uma voz que conta; uma mão que abre portas e traça caminhos entre a alma dos textos e a alma dos leitores. E para fazer seu trabalho não deve esquecer que, para além de professor, é também um ser humano, com zonas de luz e sombra, com uma vida secreta e uma casa de palavras que têm sua própria história. Seu trabalho, com a literatura mesma, é risco e incerteza. Seu oficio privilegiado é, basicamente, ler. E seus textos de leituras não são apenas os livros, mas também os leitores. Não se trata de um ofício, mas de uma atividade de vida. Não figura em dicionários nem nos textos escolares, tampouco no manual de funções, mas pode ser ensinado. E essa atitude será o texto que os alunos irão ler. Quando saírem do colégio e esquecerem datas e nomes, poderão recordar a essência dessas conversas de vida que se teciam entre as linhas. No fundo, os livros são isso: conversas sobre a vida. E é urgente, sobretudo, aprender a conversar.
[1] Texto retirado do livro Ler e brincar, tecer e cantar – Literatura, escrita e educação. Coleção Gato Letrado, Editora Pulo do Gato, 2012.
[2] “Deber antes que vida”, da estrofe do Hino Nacional colombiano. Refere-se a Ricardo Ricaurte, que perdeu a vida na Batalha de San Mateo, ao optar por queimar-se vivo em um alojamento cheio de munições, a fim de impedir que os espanhóis tomassem o local. [n.e.]
[3] Vladmir Nobokov. Curso de literatura europea. Editorial Bruguera, 1983. [n.a.]
[4] Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta. Rio de Janeiro, Editora Globo, 2001. [n.e.]
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