Projeto Escrevivendo

 

 

A Namorada

Sei que o papo não é bem esse, mas primeiro não posso deixar de registrar aqui uma denúncia: tenho encontrado nos jornais, revistas e livros recentemente editados uma tremenda grosseria com a palavra idéia. Há uns cinqüenta anos, mais ou menos, que a busco incessantemente e sua imagem estava sempre abrilhantada por uma linda acentuação sobre a letra e que, por acaso, inicia meu nome: Edson Marçal. Mas vamos ao caso propriamente dito. Ditongo aberto éi, vogal e semivogal, grafa-se com acento agudo. Bicho (assim falava Roberto Carlos nos velhos tempos), é sério, vinha escutando que chegaria essa tal padronização na língua dos países de origem portuguesa e não estou nada preparado para lidar com mais essa mudança, sim outra vez, reforma ortográfica ufa, nem sei por onde começar agora que estou fora da escola. Por que naquele tempo...

Externato Dino Bueno, um colégio de freiras, meu pré-primário. De tanto reclamar com minha mãe que eu também queria ir para a escola, por que meu irmão mais velho estava indo, ela matriculou-me. Quando chegou à hora de partir para o fatídico primeiro dia de aula, meu pai teve que levar-me com sua cinta em punho e meu rosto em lágrimas. Minha primeira professora, Dona Letinha; depois Terezinha; terceiro ano a Freira Damiana e, no quarto primário, uma freira igualzinha as outras professoras que não usavam as vestes da ordem religiosa; não lembro seu nome, mas jamais esqueci o da colega, Maria da Glória, que além de Maria era a minha Glória.

No álbum de fotografias anual da escola, fixo-me em seu rosto retangular, não fazia mal que não fosse um pouco mais arredondado, ela tinha a face que eu gostaria que tivesse: os cabelos curtos levemente cacheados nas pontas e as sobrancelhas grandes como as minhas. Maria da Glória combinava comigo, sabe.

No último ano interessei-me mais por ela, ficava por perto, não teve nem um pegar de mão, apenas a fitava. Penteava-me pensando nela e sorria pra ela.

Acabar aquele primário foi como terminar com o meu primeiro encontro, com uma paixão.

A vida seguia seus rumos, eu trocara as calças curtas pelas inadaptadas rancheiras, o tênis Conga pelo Kichute. Q-suco não queria mais, Gini, Grapette, Gingerale, será que eu estava tendo alguma fixação com a letra “g” que estavam surgindo demais? O que ainda me divertia era abrir com um corte o carrinho de corrida de plástico, na cores vermelho e branco, enchê-lo de peso para não virar e sair puxando-o por um barbante em frenéticas voltas pelos quarteirões que circundavam o prédio onde morava.

E foi após um dia destes de “grande prêmio”, descansando na porta da loja do meu pai, que revi Glorinha. Tinha se mudado para ali, para o prédio de esquina, a duzentos metros daquele que eu morava. Ela deixara o cabelo crescer, as mesmas sobrancelhas grandes e, agora, esboçava um sorriso maroto que a tornara mais fascinante ainda. Diante desse acontecimento, meu sonho automobilístico fora bruscamente interrompido, porque minhas atenções voltavam-se quase exclusivamente para a Glória.

Depois desse reencontro, eu ia para a rua para vê-la passar, dava umas trezentas e tantas voltas, a procurá-la, por aqui, por acolá, e, quando ia chegando próximo da sua casa, dirigia meu olhar para sua varanda na esperança de vê-la. Para alívio dessa angústia, Glorinha saía algumas vezes para passear na companhia de sua amiga Cássia ( que mais tarde foi miss Brasil).

Meus amigos de corrida, agora, não puxavam mais seus possantes carrinhos de plástico, davam voltas em carrinhos de rolimã. Eu já havia caído da garupa da bicicleta do meu xará, quando enfiei meu pé no aro da roda e fomos cada um para um lado, eu pra porta de um bar e ele pro meio da rua do Triunfo, meu pé sem meia, sapato e roda torcidos a brincadeira acabara assim. Mas apesar do trauma, a cena foi muito engraçada.

Num aniversário na cobertura do Edifício Sabará, onde morava Eduardo, estávamos todos reunidos, também a irmã dele, Monica, mais a Tuca e o irmão dela, o Banana. Eduardo tocava violão e nós cantávamos até que seus pais saíssem da sala; aí brincávamos de “minha mãe mandou escolher esse daqui” para aprender a beijar, ou dependo de quem fosse o escolhido, saber quem dava o melhor beijo.

 Soube, mais tarde, por minha mãe, que, nessa época, a Glorinha e a Cássia, certa vez, bateram à porta do nosso apartamento e ela expulsou-as de lá, sob o pretexto de que seu filho tinha é que estudar. Descobri, ouvindo isso, que as mulheres são mesmo diferentes de mim nessas horas: seja para proteger sua prole ou seja por estarem decididas a dar uma segunda chance a alguém, são sem rodeios. Diante da minha insistente teimosia em permanecer demasiadamente pueril, minha Glória só poderia mesmo é ter-se enamorado por outros vizinhos.

 

 

 

 

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Tags: canções, escrevivendo, escrita, leitura, oficina.

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