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"História Pessoal da Música" por Samia Schiller


Ela testemunhou grandes momentos da história da música. Viu Elvis e os Beatles, ignorou os Rolling Stones, vibrou com a turma da jovem guarda, vaiou o Tom Jobim no festival da canção e caminhou junto com Roberto Carlos.

Não dá importância para opinião dos outros, acha que quase sempre eles estão errados. Seu ponto de vista sobre a música da sua geração é original e tendencioso; mostra mais a personagem do que a verdade.

Só ela sabe o real motivo do fim dos Beatles. Foi a histeria. “Quem é que consegue se ouvir no meio daquela gritaria? A gente ia à matinê assistir os filmes e era só gritaria em cima das cadeiras. O cinema inteiro gritando por quase duas horas. Imagina nos shows que eles faziam? Eles não se escutavam mais, aliás, ninguém escutava. Fui ouvir um disco deles sem gritar, você já tinha uns três anos.”

Uma vez perguntei qual o seu Beatle preferido, respondeu de pronto:

- Claro, que o Paul.

- E o Lennon?

- Ah! Mas, o Paul era tão bonito...Depois, inteligente eu já sou. Não nasci para os feios.

Gostava mesmo dos programas da Jovem Guarda aos domingos à tarde. Acredita que funcionavam como uma válvula de escape para os jovens perdidos entre os extremos da época. O cabeludo conquistava as meninas falando de amor e os rapazes com a malandragem do Negro Gato e o anel de brucutu roubado. Era uma transgressão, mas era o errado permitido, tolerado, quase oficial.

Passou batido pela ditadura. Não se importava com repressão ou luta política. Só se comoveu com o Vandré. “Não é certo bater num músico que cantava tão bonito, um pecado amassar aquele pão”. Talvez, porque nesse período linha dura, se casou e teve filhos. “Na vida o importante mesmo é você e seu filho, o resto é o restante.”

Quando falei do Led Zeppellin, se espantou, não se lembra nem de ouvir falar. Deviam ser da turma dos hippies. “Eram bonitos, todas aquelas roupas e cabelos compridos”, mas nunca gostou dessa história de drogas, no máximo uma Malzebier e um Cinzano. Nunca no mesmo dia.

Elvis morreu e ela se revoltou. “Há mulheres que enquanto não destroem um homem, não sossegam. Essa tal de Priscila nunca me enganou”. Por alguns anos, achou, como muitos, que ele preferiu recomeçar a vida, longe de tudo.

Depois, a morte do Lennon. A televisão ficou ligada, mostrando as pessoas se reunindo no Central Park em vigília. Mais tarde, chegaram os casais do carteado, dessa vez, não para jogar, mas para chocados, ficarem repetindo: “o sonho acabou, o sonho acabou”. E ela: “Acabou coisa nenhuma. Temos esse bando de crianças para criar”.

De todos eles, só restaram: ela e o Roberto. São dois sobreviventes. Sabem que os amores morrem dolorosamente, mas outros ocupam o lugar. Sabem valorizar os amigos. Sabem que a política não é tão importante quanto dizem. Sabem que a paz está no sorriso. Sabem sofrer, mudar, se adaptar e continuar. Sabem que a vida é para quem é papo firme.

www.cronicasdeumasombra.blogspot.com.br


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Tags: escrevivendo, escrita, leitura, oficina

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