Projeto Escrevivendo

INTERPRETAÇÃO DE SONHOS

 

                - Toda noite, sem um porquê, apareço na casa onde morei quando criança. Levei uma vida para ir embora, por isso não gosto de estar entre estas paredes. Quero sair. Começo a sentir um medo antigo. Ele vai invadir a casa e me machucar. Primeiro, tento fechar o vitrô; Ele me impede com as mãos. Surjo diante do portão. Luto para mantê-lo trancado e não consigo. Escapo pela porta da sala, que não fecha. Atravesso o corredor estreito e percebo a janela do quarto. Aberta. Vou pular para o quintal, mas sinto que Ele pode estar lá.  Decido fechar a janela, sabendo que não há mais nada a fazer. Ouço passos rápidos, ouço passos próximos, ouço os barulhos violentos dos caixilhos e me encolho, impotente, tentando fingir que não estou ali. Por sorte, sempre acordo.

                A outra, depois de ouvir a sonhadora, disse:

                - Parece muito angustiante.

                - Sim. Para mim o pior não é o pesadelo em si, mas o fato de acontecer sempre da mesma maneira e quase todas as noites. Tenho medo que ele acabe se realizando.

                - Preste atenção: o pesadelo não se refere ao seu futuro, mas ao seu passado. Você cresceu, partiu e não voltará mais para aquela casa.  Você precisa acreditar que esta fase da sua vida terminou.

                Depois deste diálogo a sonhadora conseguiu enterrar seu terror noturno.

              Nesse exato momento ela dorme.

 

Samia Schiller – escrevivendo – sonho

www.cronicasdeumasombra.blogspot.com

 

 

 

EU SOU O SONHO DE ALGUÉM

 

Eu sou o sonho de alguém.

Descobri assim, por acaso, mas já não há dúvidas: eu sou o sonho de alguém. A prova disso é que não escolhi a vida errada que levo. Outro alguém é o responsável por tudo isso.

Já pensaram que a vida é cheia de disparates incoerentes? Que a realidade é uma rede intrincada permeável envolvente complicada e algo sufocante? Não acham que ela se parece com os sonhos ou os pesadelos? Pois, então, conclui que essa é a verdade: somos sonhados por um ou mais sonhadores (Essa última parte ainda não verifiquei totalmente).

Certa disso, a primeira atitude que tomei foi fingir ignorância. Resolvi assim: O sonhador não deveria nunca pressentir que eu sabia ser sua personagem. Ele poderia se assustar e acordar no meio do sonho. O que seria de mim?

Agora, imaginem o que seria de vocês?

Então, toda vez que tomava consciência da minha condição ficcional, adotava uma atitude bem realista: comia uma omelete, desenhava gráficos de dispersão ou dormia candidamente. De forma alguma me beliscava.

E, assim, fui me acostumando com as esquisitices do sonhador. Outro dia mesmo, teve um sonho erótico com o vizinho do 162. Agora, ao invés de descer no 104, tenho de seguir, pelo menos duas vezes por semana, para o décimo sexto andar, realizar suas lascivas fantasias. Eu sou casada. Vejam só a confusão.

O mais difícil são os pesadelos.  Andando pelo centro da cidade, à noite, me vejo seguida por dois homens.  Viro esquinas, passo por vielas, aperto o passo e os dois se aproximam. O coração desgovernado. O comércio fechado. Tropeço no lixo. Já não sei por onde ando.  “Acorda, desgraçado. Acorda.” Vejo a estação São Bento do Metrô aberta. “Opa! Dessa escapei por pouco.”

Estranhamente, após os conflitos naturais em um caso como o meu - ou deveria dizer nosso - percebi que posso viver muito bem. Até melhor. Sonho irresponsavelmente. Se tenho algum problema não faço nada, espero que o sonhador resolva.  O sonho é dele, ele que encare. Se tenho algum desejo, podendo, realizo na hora. Pois, vai que o sonhador acorde e esse seja o meu último momento?

Não sei bem quem está contando esta história, se é a sonhada ou o sonhador, mas precisava mesmo dizer, antes que algo nos interrompa, que a vida é um momento sem final, um delírio sem nexo: ela é o sonho de alguém.

 

Samia Schiller – escrevivendo

www.cronicasdeumasombra.blogspot.com

 samia.cris@yahoo.com.br

 

 

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Tags: escrevivendo, escrita, leitura, oficina, sonhos

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