A Augusta pulsando em cores, cheiros, sons, álcool, nada me interessa, só a busca pelo livro tantas vezes buscado. Digo “Coração, solitário caçador”, o rapaz sai a procurar. As estantes exigem meu olhar. Livros em diversas cores chamam e clamam minha atenção, folheio, releio, desordeno, recordo alguns, outros me adotam.
De repente, pula em minhas mãos um livro querido, conhecido, amado. Uma voz pergunta:” vai levar?”
Já não sei mais o que procuro.
As lembranças embaralham-se, ouço sua voz e a da Betânia - “Você não sabe quanta coisa eu faria além do que já fiz...”.
As palavras lidas, relidas, memorizadas, surgem, dissolvem a Augusta, desmancham a cidade, refazem momentos.
Arles. O livro. O quadro - ”A noite estrelada”. A cama no hotel romântico. Tudo.
Nossos pés, nos lençóis, juntos se encostam , roçam-se , beijam-se, as bocas os imitam. Risadas, carícias, suor, nós felizes. Você puxa meu livro, lê alto: Gozar de uma bela coisa é, como o coito, o momento do infinito. Citando Van Gogh.
Sua voz novamente evoca : .”..eu confesso não saber a razão, mas olhar as estrelas sempre me faz sonhar.” Éramos felizes viajantes.
Viajantes , amantes, estreantes numa Provence esplendorosa, ruas estreitas, de pedras rugosas, jardins de girassóis amarelos que comovem , mexem com a gente, unem-se a nós como se fizéssemos parte dessa paisagem.
Aix-em-Provence, Avignon, Menton, Le Baux ; errantes cansados, exaustos no carro,” vem, vai valer a pena”, você diz.
Continuamos. Outros amarelos, outros verdes, altos ciprestes. Ver, olhar, sentir, cheirar o Mediterrâneo azul. Sanduíches no carro. Amar.
Num café, mesinhas ao ar livre, a conversa leve e solta, leitura do livro, café quente com croissants, queijos, vinho e o “vai e vem” dos franceses nos levam a momentos só nossos, tantas vezes repetidos e amados, momentos mágicos, onde a tristeza não tem lugar.
Na mesa ao lado, um casal discute. Ela se altera: “não pode ser! Você me traiu”. A resposta imediata: "Foi um erro, desculpe, perdão”. Olho fixamente para seus olhos. Brilhando, eles me respondem que nunca isso acontecerá conosco: nosso amor é diferente.
Dias e noites de amores.
Sua voz, novamente: “E ainda que a realidade me limite,
A fantasia dos meus sonhos me permite
Que eu faça mais do que as loucuras
Que já fiz pra te fazer feliz...”
“Afinal, vai levar ou não?” O rapaz volta com “Coração, solitário caçador”.Ouço. Emudeço. Turvam-se os olhos.
Já não sei exatamente.
Desaparecem as cores , o cinza se faz. Não mais Van Gogh, não mais estrelas, não mais livros. Não mais sua voz.
De repente, não somos nós, não sou eu quem está ao seu lado, as risadas e as carícias são de outra.
Chega de Betânia.
Preciso do Chico: “ Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe o sentimento
E bota no corpo uma outra vez...”
Por Regina Célia
Veja também: http://youtu.be/Iew0qbFHcdo
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Eu me transportei para a França junto com a personagem e vivi também a cena romântica. Excelente texto!
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