Proposta para o 5º encontro da turma do Museu da Língua Portuguesa, neste sábado, 31 de outubro.
Em Busca do Velho Cheiro
Frederico Branco
Postais Paulistas – 2º edição 2002
(...)
Embora duramente agredido pela poluição mais recente e por quarenta e tantos anos de tabagismo continuado e levado a sério, meu olfato ainda resiste a tudo. Mais ainda preservo uma excelente memória olfativa – tanto assim que ainda recordo a época em que boa parte de São Paulo cheirava bem, do tempo em que ruas, praças e bairros da cidade tinham cheiros e aromas distintos e bem definidos.
Não nego a ocorrência e registros de alguns maus cheiros. Costumava sustar a respiração, por exemplo, ao passar pela frente da fábrica de sabão do Matarazzo, na água branca, quando estávamos a caminho de Campinas. Tapava o nariz quando cruzávamos ao largo do imenso e deserto brejo da margem do Pinheiros que viria a ser a Cidade Jardim. Antes de passarmos pelo parque Pedro II demandando a estrada velha do Rio, meu pai nunca esquecia de sugerir que os vidros do carro fossem levantados, para evitar o cheiro do gasômetro.
Mas, esses maus cheiros eram poucos e raros, perdendo longe para os bons, dos gerais aos específicos.
Entre os primeiros desses predominavam os naturais.
Explica-se. São Paulo era uma cidade horizontal. Os edifícios mais altos, ou arranha-céus, como se dizia, ficavam concentrados no perímetro do antigo Centro, ocupados quase exclusivamente por empresas, repartições, escritórios ou consultórios. Vivia-se ainda bem perto da terra, e nos bairros rara era a casa que não tinha o seu jardim, fosse ele grande ou pequeno, sofisticado ou caipiramente simples. E, como por estas bandas as estações são pouco mais que convenções da folhinha, a cidade recendia a flores de janeiro a dezembro, sem dar a menor atenção a outono ou inverno. E ao perfume dos jardins particulares unia-se o dos parques e praças públicas: na praça Marechal Deodoro, por exemplo, o aroma das rosas rompia sem esforço a marcialidade da denominação; na Buenos Aires, prevalecia o adocicado das açucenas; no parque Siqueira Campos, lado a Avenida Paulista, o pungente odor noturno dos jasmins sobrepunha-se a tudo.
Eram cheiros naturais, conduzidos pela brisa e de domínio público, como o de terra molhada quando começa a chover forte.
Em casa, eles eram os de cera aplicada há pouco ao soalho – não pise aí, menino, que ainda não secou – de óleo de peroba e do galante Flit, uniformizado e sempre em guarda contra insetos.
As ruas tinham seus cheiros característicos e bem definidos. Na travessa do Comércio, por exemplo, entre a São Bento e a Quinze de Novembro, respirava-se o ar mais paulista de São Paulo, sempre impregnado do cheiro forte de café torrado na hora. A pouca distância, já na rua direita – para onde se abriam as ortas da Casa Alemã, Mappin Stores, Bar Viaducto e Sloper – o ar da tarde recendia aos extratos e discretas colônias das que iam às compras ou ao chá das cinco.
Logo mais acima, no estreito e movimentado corredor que era a Barão de Paranapiacaba, onde o sol raramente batia, o odor predominante era de natureza muito diferente, procedendo de uma infinidade de bibocas especializadas em combinações e variações preparadas a partir de um ingrediente comum e popularíssimo. Ali, nas prateleiras, havia de tudo que se possa imaginar em termos de cachaça: com uvaia, santo remédio para os males da vista; cachaça com sucupira, um porrete para o reumatismo e casos de artrite renitente; cachaça com carquejo, renomada estimuladora das funções hepáticas; cachaça com arruda, que acumulava as funções de bom amargo estomacal com as de fechamento do corpo contra mandinga e olho gordo; cachaça com losna, infalível no tratamento rápido da asma e outras afecções do trato respiratório; cachaça do Litoral e cachaças da Serra, do Sul e do Norte, brancas ou amarelas, simples ou combinadas, novas ou curtidas. E era tão intenso o odor que permeava a ruazinha, que os abstêmios preferiam evitar a Barão de Paranapiacaba como passagem encurtadora entre a praça da Sé e a Quintino Bocaiúva.
Na Vergueiro, á altura do pontilhão de grades verdes. À direita do falecido Cine Paulistano, o ar recendia docemente ao chocolate embalado em pacotes vermelhos, no fundo do grotão, pela fábrica Sonksen.
No Brás, Bexiga e Barra Funda havia um grande número de ruas e travessas que cheiravam permanentemente a lenha e a pão assado em forno de barro.
Noutras ruas, vizinhas da Cantareira, os cheiros eram mais que particulares: de azeitonas pretas em conserva, parmezão, frutas frescas, bacalhau seco, alho, pimenta, cebolas, cravo-da-índia, malagueta.
De lá para cá, esses velhos cheiros se esvaíram.
A efemeridade dos jardins particulares, tanto dos mais pretensiosos como dos caipiras e ingênuos, foi sepultada pela perenidade do concreto armado dos edifícios de apartamentos que verticalizaram a cidade. Entre os espigões, não restou espaço à flores. As rosas da Marechal Deodoro mal sobrevivem á sombra do Minhocão; na Praça Buenos Aires resta pouco mais que grama; e o Siqueira Campos, por milagre preservado e estreitamente cercado por todos os lados, já não tem mais os jasmins que perfumavam a noite.
A rua Direta, como todo o perímetro central, converteu-se num formigueiro que cheira a plástico. O pão, bromatado e acondicionado em celofane, já não cheira. Erradicou-se o correr de bibocas da travessa da cachaça, e a velha Barão de Paranapiacaba cheira agora apenas a forró e coisa usada, como mero desdobramento da grande feira nordestina em que se transformou a Sé.
A Sonksen sumiu, a resina substituiu a cera de soalho, o óleo de peroba não dá mais o ar de sua graça e o galante soldadinho Flit retirou-se há muito tempo do serviço ativo.
Na área da Cantareira pouco resta a cheirar nas ruas, pois alho, pimenta, cebola, parmesão fresco, bacalhau seco e afins deixaram de ser expostos á porta, junto às calçadas, e permanecem prudentemente recolhidos ao interior do Mercado ou encafuados seguramente no fundo de depósitos.
Nem mesmo nos bairros persistiu o antigo cheiro dos armazéns de esquina – o velho e familiar odor da combinação de secos e molhados. Foi-se, como foram os próprios armazéns, devorados pelos supermercados, que só recendem, impessoal e quimicamente , a água sanitária e DDT.
Eliminados e varridos os antigos, restou a São Paulo o cheiro – se é que se pode chamá-lo assim – da combinação de gás carbônico, resíduos em suspensão, lixo e venenos vários, integrantes da encardida e cinzenta mortalha de poluição que nos sufoca.
Que fazer?
Nem tudo está perdido. Assim como para os que retêm a memória visual a imagem da criatura há muito amada, os que conservam na auditiva versos das primeiras cantigas, os que preservam a sensação das antigas e furtivas carícias amorosas ou o sabor da primeira pitanga provada, aqueles que não esqueceram os velhos cheiros ainda têm a que se apegar. Embora tida como vulgar e humilde, a memória olfativa também é uma festa móvel e para quem a preserva nem tudo está de todo perdido na cidade que se descaracterizou a ponto de perder até mesmo – quem diria – seu próprio cheiro.
Crônicas escritas entre 1973 e 1993
Frederico Branco (1927-2001) nasceu em São Paulo, no bairro de Higienópolis. Jornalista de O Estádo de São Paulo, Jornal da Tarde e revista Visão. Único livro publicado “Postais Paulistas” em 1993.
(foto via
Espaço Funcional)
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