Projeto Escrevivendo

Toques 

 

Parece um paradoxo: hoje em dia as pessoas se tocam com mais frequência, mas estão mais distantes. Pelo menos, a julgar pelos encontrões que se dão pelo passeio público. Comete-se a impropriedade de considerar aqueles esbarrões truculentos, toques (é questionável); mas, certamente, esbarrante e esbarrado, ao não esboçarem a mínima reação pela dor que sentem com o impacto, demonstram um sinal de embrutecido comportamento (não pairando questão alguma sobre isto). Esbarrantes e esbarrados, todos borrados por certa burrice.

O número de pessoas aumentou pelas calçadas, ou as calçadas diminuíram de tamanho (sob o ponto de vista das calçadas), dada a enormidade da ameba humana que as percorre. A questão não é de volume, mas de pretendida convivência sadia e não-bélica.

E como é chique estar na Livraria Cultura e ser cutucado pela quina plástica de uma cestinha de supermecado repleta e pesada de livros. O cestante, talvez absorto com uma publicação de Goethe (no alemão original do sec. XIX) ou talvez querendo divulgar a sua última aquisição, acaba por comunicar infantil vaidade. Realmente, estamos inovando em termos de encontros culturais, ou, melhor, de choques culturais. De qualquer forma, Goethe ou poder aquisitivo na costela dos outros são refresco.

Dia desses, um amigo que há tempo não andava pela Três Rios, se espantou com a legião de pessoas que rumam em direção ao metrô Tiradentes às 18:00. Disse que se lembrou do filme Metrópolis do Fritz Lang. Chamou a massa de operários de zumbis (uma visão um tanto quanto ideológica, pois, certamente, havia ali balconistas, coreanos, judeus, nordestinos, alunos - e o meu amigo boca-aberta também). Achei que pintou o quadro um pouco macabro demais, mas não sem nenhuma motivação.

- O metrô sugando aquelas almas...

Ai que meda!

O ápice do rush calçadístico bom-retirista foi quando uma bicicleta veio pela calçada...

(Sim. Sim. Elas andam agora pela calçada também. Além dos skates, patins e do ressuscitado ancestral patinete pra completar a patetada toda. Não há espaço no asfalto para uma bicicleta carola e, depois, uma bicicleta andar assim, mocinha, pelas ruas é muito perigoso. O lobo-mau-carro pega. Isso do ponto de vista das bicicletas. É claro.)

...A bicicleta veio pela calçada e deu um tranco em um homem obeso, jogando-o numa caixa de verduras coreanas que quebrou suas frágeis madeirazinhas:

- O senhor está bem?

Com vegetais em chapéu generoso escorregando pela careca e rosto, um pouco zonzo, respondeu:

- Estou com fome...

Fosse uma caixa de melões, o problema estaria mais bem resolvido. Está provado: a calçada é um habitat pacífico possível para seres humanos, bicicletas e vegetais coreanos.

 

 

Parece um paradoxo: hoje em dia as pessoas se tocam com mais frequência, mas estão mais distantes. Pelo menos, a julgar pelos encontrões que se dão pelo passeio público. Comete-se a impropriedade de considerar aqueles esbarrões truculentos, toques (o que é questionável), mas, certamente, esbarrante e esbarrado, ao não esboçarem a mínima reação pela dor que às vezes sentem, demonstram um sinal de embrutecida aspiração (o que não traz questão alguma a respeito). Esbarrantes e esbarrados, todos borrados por certa burrice. 

 

 

Dando Ordem ao mundo

(Sobre o filme ‘Conto Chinês’)


Apenas algumas hipóteses polemistas: nossos hermanos realmente aprenderam a lição. Poderíamos fazer um esforço no mesmo sentido. Atingiríamos mais público e estaríamos mais aptos a quebrar este paradigma tão ‘redondo’, tão perfeito na forma.

Após a sequência inicial que se passa na china, temos um plano longo de ponta cabeça que se acerta, girando 180º. Seria o ponto de vista da vaca? Ora, no filme todo, assistimos a um acertar de contas com o acaso. De um acaso que ceifa uma vida a um acaso que une outras vidas.

Um filme globalizado: província chinesa de Fulshen, Bucareste e Buenos Aires: o que nos une? Nossas fatalidades (guerra, mortes bruscas) e limitações (neuroses, incapacidade de se aproximar do outro).

Um extenso impor de premissas cuja falta de pressa pressupõe maturidade e firmeza diretivas que se camuflam sob o fortuito: acontecido na China, contação de pregos, adversidade com clientes, tentativa de aproximação, pesquisa em jornais, descanso à beira do aeroporto... e lá vem o chinês cuspido de um táxi – deflagra-se o conflito. Tudo isso envolvido pelo riso do mau humor – tijolo básico desta construção –, comentado por uma música empaticamente amistosa.

Se o policial aparece numa displicente sequência - de ignorância e violência, é certo - terá uma função maior: a redenção do chinês. Aonde se quer chegar?

Num giro de 180º que nega o fortuito. No humano impondo-se sobre o aleatório. Na leitura edificante que se pode fazer sobre o casual. O que um desenho a carvão de uma vaca em grande angular pode significar? Se o arbitrário acidental nos desfere penalidades, façamos uma leitura que nos convenha, que nos seja útil.


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Tags: almeida, escrevivendo, escrita, guilherme, leitura, oficina

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Comentário de Samia Schiller em 23 outubro 2011 às 10:00

Vou comentar Toques porque ainda não assisti ao tal filme.

Toque é excelente, não?

Adorei o ritmo da frase: "Esbarrantes e esbarrados, todos borrados por certa burrice."

Adorei o humor. "Realmente, estamos inovando em termos de encontros culturais, ou, melhor, de choques culturais."

Adorei o ritmo.

 

 

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