A minha presença no Rio, naquela tarde de verão, justificava-se: acompanhar a gravação do documentário "As Canções", de Eduardo Coutinho. Infelizmente, estava sem tempo para aproveitar a cidade, pois novos trabalhos me aguardavam em São Paulo.
Sentada na sacada do apartamento, reconhecia o cheiro daquela paisagem, lembranças percorriam aquele lugar. Ah ! Tinha a sensação de que tudo aqui ainda me pertencia; respirei profundamente, suspirei na verdade, e voltei a me concentrar nas anotações que já tinha rascunhando sobre o documentário. Revi a entrevista que Coutinho deu à Globo News.
Imaginem pesquisadores no centro do Rio de Janeiro, carregando cartazes onde estava escrito: "alguma música já marcou sua vida?! Cante e conte sua história". Resultado: 240 entrevistados e 18 histórias que, agora, teriam suas partituras lidas.
Talvez eu quisesse fazer parte desse roteiro, cantar a nossa canção, abraçar novamente aqueles acordes, mesmo tendo que impor um novo ritmo, ainda sinto muito a sua falta. Por alguns momentos, apossei-me novamente dos nossos dias, você me olhando com aquele jeito de menino que me desconcertava, e cantando "Olha você todas as coisas que um dia eu sonhei pra mim , a cabeça cheia de problemas , não importa eu gosto mesmo assim..", e de repente uma lágrima, balancei a cabeça para tatear mais uma vez as minhas anotações.
O telefone tocou, o motorista havia chegado.
No teatro, uma movimentação intensa percorria os corredores, a cortina do palco ainda fechada, e os últimos detalhes cenográficos eram resolvidos.
A assistente de produção conseguiu um ótimo lugar para mim, perto de Coutinho. Com cuidado, sem fazer muito barulho, organizei tudo que precisava para acompanhar a gravação.
No palco, apenas uma cadeira. Era lá que, por alguns momentos, as lembranças daqueles personagens seriam encenadas.
Enquanto esperava, fiquei pensando porque o editor havia me escolhido para aquela matéria, pois fazia algum tempo que não escrevia critica de cinema; há dois anos estava no jornalismo investigativo.
Lembrei da conversa que tive com Eliane Brum ontem, quando falávamos que o mais fascinante na profissão do repórter é a possibilidade de bater na porta de tantas vidas e ter uma boa desculpa de entrar, e estou aqui para entrar mais uma vez, na vida de algumas delas - e elas na minha.
Além disso, mais um aprendizado na minha carreira: observar características peculiares de Coutinho. No início da entrevista, chega de mansinho e sabe ouvir e dar tempo às pessoas, sua sensibilidade permite que ele se aproxime, se "aconchegue" e conquiste a confiança do entrevistado. Para ele, o momento de gravação é uma espécie de exercício espiritual. "Tenho que me colocar no lugar do outro. Ouço e acredito no que as pessoas me falam".
Cenário pronto, histórias narradas, ora nostálgicas, memórias de infância, outras memórias em que a morte se fez presente, ora aquelas contadas com irreverência, no tom malandro do samba carioca; histórias de amor, aquelas que duram, aquelas que doem, aquelas que, por vezes, são correspondidas e, por outras - não, nas vozes de Chico e de Roberto.
Entre tantas canções e histórias, claro que me reconheci em alguns tons, em algumas partituras. Ouvir nossa música era senti-la como uma oração, era tocar naquelas conversas tolas durante a madrugada. Entre risos, parecíamos crianças, nossos corpos estremeciam, e quando tudo silenciava, sentíamos uma sinfonia em tom dócil.Nossa melodia ainda ressoa em mim.
Quando a cortina se fechou e a cadeira ficou vazia, olhei para Coutinho, como se pedindo: eu posso?
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