Projeto Escrevivendo

Camila e a função fática da linguagem

Por Gislene da Silva

 

Tinha vindo para a cidade grande para estudar numa boa universidade. Já se formara há um ano e agora trabalhava no escritório de uma empresa nova, mas promissora. As pessoas mais próximas continuavam sendo as da família, que ficara no interior, pois com os colegas da faculdade acontecera o mesmo que com os colegas da escola: acabaram sumindo depois da formatura. Camila ligava pelo menos uma vez por semana para falar com cada pessoa da família, além de trocar mensagens pela internet.

Segunda-feira sim, segunda-feira não, passava no mercado na volta do trabalho para fazer a despesa da quinzena, e achou estranho quando não encontrou nenhum funcionário para quem perguntar o preço de uma mercadoria, só havia as moças que ficavam nos caixas. Neste dia, quando chegou ao apartamento, ligou para a família. Falou primeiro com a mãe, depois com o pai e depois com o irmão mais velho, mas quando pediu para falar com a caçula, o telefone começou a chiar e o seu irmão não entendia o que ela falava. Teve que desligar sem falar com a irmã. No dia seguinte, ligaria para a companhia telefônica par que isso não voltasse a acontecer.

Na sexta-feira daquela mesma semana, o pessoal do trabalho convidou Camila fazer um happy hour. Como já desde quarta-feira um dos colegas não ia trabalhar, resolveu aproveitar o momento de relaxamento para perguntar se alguém sabia o que tinha acontecido. Como perguntassem de quem ela estava falando, Camila entendeu que ele devia ter feito algo grave, que nem quisessem mencionar, mas não ficou muito preocupada.

            Na segunda-feira seguinte, só percebeu que se esquecera de ligar para a companhia telefônica quando teve que desligar o telefone sem ter falado com nenhum dos irmãos por causa do chiado. Nessa noite ainda trocou mensagens com o irmão pela internet, mas não encontrou a página da caçula, então achou que ela havia deletado o perfil comum e ficado só com o fake, onde Camila não fazia parte da lista de amigos. Tentou confirmar sua teoria com o irmão, mas ele já não estava conectado.

            No dia seguinte, lembrou de ligar para a companhia telefônica e a atendente disse que mandariam um técnico e que o problema estaria resolvido em dois dias. Só na hora do almoço Camila reparou que outra colega do escritório ainda não tinha ido ao trabalho naquela semana. Novamente tentou perguntar, mas todos agiram como no happy hour: ninguém parecia saber de quem ela estava falando.

            Na sexta-feira, excepcionalmente, resolveu ligar para a família para falar com os irmãos, já que não conseguia encontrar mais nenhum dos dois na internet. Mas só conseguiu falar com a mãe, por causa do defeito no telefone. Ficou indignada e desceu até a portaria para verificar se a companhia telefônica tinha mandado alguém, mas o porteiro disse que não tinha vindo ninguém.

            Na segunda-feira ligou do trabalho para a companhia telefônica, mas não tinha atendentes disponíveis, então Camila teve que ouvir uma mensagem eletrônica e registrar sua reclamação depois do bip. Era o dia de passar no mercado antes de ir pra casa, e dessa vez só havia um caixa funcionando, mas não havia fila. Pensou que o mercado estava falindo, e calculou que, se fosse assim, gastaria mais quinze minutos de caminhada para fazer a despesa da quinzena em outro mercado.

            Quando chegou em casa e tentou ligar para a família, o telefone não dava linha. Camila verificou se todas as contas estavam pagas, e estavam; então decidiu que teria que ir pessoalmente à companhia telefônica no dia seguinte e, de fato, foi. A moça que a atendeu disse que haviam mandado um técnico na sexta-feira e que ele não havia constatado nenhum problema. Elas compararam o endereço e, como estivesse correto, Camila insistiu para que mandassem o técnico novamente. Voltou para casa querendo falar com o porteiro, mas ele não estava lá quando ela chegou e também não havia nenhum recado. Camila tentou interfonar para a portaria várias vezes até a hora de dormir, mas ninguém atendia.

            Na manhã seguinte, quando chegou ao escritório, só havia duas pessoas trabalhando. Decididamente, algo de muito grave estava acontecendo. Mas seria possível que a empresa estivesse falindo e ela não tivesse ouvido não a respeito? Quando chegou ao prédio em que morava, o porteiro não estava na portaria, novamente. Então Camila deixou um recado em cima do balcão pedindo que ele interfonasse para o apartamento dela quando chegasse. Retirou uma pedra de um vaso de planta e pôs em cima do bilhete, para que o papel não voasse.

            O telefone ainda não funcionava. Ao sair para o trabalho pela manhã, o bilhete e a pedra estavam exatamente como Camila havia deixado. Depois de esperar 40 minutos sem que nenhum ônibus passasse no ponto, Camila teve que caminhar 50 minutos para chegar à empresa, pela primeira vez, com uma hora e meia de atraso. Mas a empresa estava fechada. Nem o porteiro estava lá, e não havia nenhuma placa ou cartaz.

            Resolveu caminhar até a companhia telefônica, mas ela também estava fechada. Então, Camila pensou em tomar um café e entrou na primeira lanchonete que viu aberta. Não havia nenhum freguês e, após chamar e esperar por alguns minutos sem obter resposta, Camila se convenceu de que, estranhamente, também não havia nenhum atendente. Procurou outra lanchonete e mais outra, e mais outra, mas todas estavam vazias.

            Camila começou a entrar em qualquer comércio que visse aberto, mas não encontrou uma só pessoa em qualquer um deles. Nas grandes lojas de departamentos, chamava e gritava, mas só ouvia o eco de sua própria voz. Só então Camila se deu conta de que também as ruas estavam desertas; não havia carros ou pedestres passando, alguns carros estavam estacionados junto às calçadas, mas sem nenhum ocupante.

            Começou a correr até uma estação do metrô: queria ir ao centro da cidade para ver se havia gente lá. Mas também não havia ninguém no metrô. Os trens, vazios, estavam parados nas plataformas, vazias. Foi à delegacia mais próxima do metrô e ao hospital mais próximo da delegacia. Começou a percorrer os corredores do hospital, já sem correr. Chamou e gritou, já sem desespero. Então, começou a se dirigir, devagar, rumo à saída. Não tinha certeza se chegaria à rua, mas se chegasse, sabia, finalmente, que não haveria ninguém.

 

 

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Tags: conto, escrevivendo, escrita, fantástico, leitura, oficina

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