Nossas Letras
Erica Franco e Renata Guerra
Coordenação: Karen Kahn
Por Décio de Almeida
Na dúvida
Estou há um bom tempo pensando em como escrever uma crônica para um curso de escrita criativa. A necessidade de falar sobre a cidade de São Paulo e o cotidiano de seus moradores está me deixando maluco.
O problema é que não consigo decidir sobre o que escrever.
O prédio onde moro, o Edifício Copam, seria ideal, mas ele já foi tema de outro texto. Pensei em descrever alguns lugares interessantes onde as pessoas andam de skate, bicicleta, passeiam com seus cachorros ou apenas ficam sentadas bebendo e se divertindo nos botecos espalhados pelo centro da cidade.
Poderia citar a famosa Galeria do Rock. Primeiro que não é só do rock. É do rock, do gótico, do eletrônico, do punk e do black. A fama – vinda dos anos 80 e 90 – é de um lugar de gente maluca e drogada. Esqueça isso. Cada andar tem seu estilo com lojas de roupas e discos, estúdios de tatuagem e lanchonetes, onde você vai encontrar pessoas de todas as idades com um visual e histórias interessantes.
Um assunto que daria uma boa crônica seria sobre um tipo de pessoa que está sempre pelo Centro, Augusta, Paulista e Santa Cecília. Sabe quando você está no dentista ou no médico e folheia uma revista de moda com aquelas roupas esquisitas em modelos tão, ou mais estranhos que as roupas? Esses são os hipsters.
É só andar um pouco que você encontra um. Outro dia estava na Praça Roosevelt – lar do teatro alternativo de São Paulo – bebendo uma cerveja quando surge um sujeito usando calças tipo gênio da lâmpada com a cintura no peito, sapato social com um bico gigante e um cabelo quadrado. A discussão da noite foi se ele cortava o cabelo com um cabeleireiro ou com um jardineiro. Algumas horas, e cervejas depois, ainda não existia um consenso. Porém, em um ponto todo mundo concordava: no jardineiro seria bem mais barato.
Outro lugar agradável que eu poderia citar é a Praça Dom José Gaspar. Ela fica entre a Rua 7 de Abril e a Avenida São Luiz. É um espaço bonito, com muitas árvores e bancos de madeira que se misturam com bares e restaurantes, criando um clima charmoso. O que chama a atenção nessa praça é a mistura de ambientes chiques e introspectivos – quer impressionar em um primeiro encontro? Vá até o Paribar – onde se ouve jazz e música eletrônica ao lado de bares nos quais as pessoas comem e bebem na calçada e o samba é tocado, ao vivo, no último som.
São dois os bares, quase lado a lado, com aqueles grupos de pagode que tocam sempre as mesmas músicas. Óbvio que os bares ficam lotados e depois de um tempo as pessoas começam a dançar perto dos músicos com uma graça e leveza que combinam com o álcool ingerido. A comida é muito boa e você irá encontrar vários pratos por um preço justo, além de uma feijoada bem servida aos sábados. Chegando cedo dá pra comer tranquilo, pois os “shows” só começam depois das 14 horas.
Bom, agora que já encontrei vários assuntos, vou escrever a crônica.
Até mais.
Neblina
O apartamento onde moro não tem cortinas. Todos os dias vou acordando com a claridade e o barulho da cidade. Depois de alguns anos – e um ou dois erros que me custaram pequenos atrasos no trabalho – consigo saber com uma precisão quase indígena que horas são.
Mas hoje a cidade esta diferente. A claridade. O barulho. Tudo parece mais abafado, mais lento. Sentado na cama, demoro alguns instantes para entender o por que.
São Paulo amanheceu com neblina.
Olho para o relógio e vejo que ainda tenho algum tempo até entrar na rotina diária. Poderia voltar a deitar e curtir mais alguns minutos de sono, os melhores, mas resisto e me deixo seduzir pela névoa lá fora.
Volto no tempo quando acordava depois de alguns gritos e ameaças de minha mãe. Assim que saia do quarto já sentia o cheiro de café e podia ouvir o locutor da rádio repetindo a hora e logo em seguida a uma música que enaltecia as qualidades da cidade e de seus moradores sempre preparados para mais um dia de trabalho.
Nesses dias minha mãe pegava duas canecas fumegantes e me esperava no corredor que dava acesso ao quintal do fundo. Minha casa ficava no alto de um morro e essa porta era uma passagem para outro mundo nos dias de neblina. A temperatura fazia com que eu apertasse a caneca entre as mãos numa tentativa de vencer a batalha contra o frio.
O sofrimento valia a pena, pois, para uma criança, era como se o mundo tivesse deixado de existir. Tudo – ou o nada – era de um branco espesso, quase oleoso. Mesmo as casas mais próximas só se tornavam visíveis depois de um tempo, quando o olho começava a se acostumar.
Lembro da carona de meu irmão até a escola e de como a cidade ia se mostrando lentamente, cada quarteirão se revelando conforme o carro ia abrindo caminho pela neblina espessa e gelada.
Depois, mais jovem, no caminho para o trabalho, ficava procurando a cidade através da janela do metro. Um trem perdido entre o passado e o futuro.
Há anos que a cidade não amanhece abraçada pela neblina. Talvez os prédios e a loucura que tomou conta das condições climáticas tenha feito a cidade perder uma de suas grandes – junto com a garoa – marcas registradas.
E hoje, anos depois, essa característica estava de volta.
A São Paulo da minha infância.
Não resisti, fui fazer um café e fiquei no celular procurando a estação de rádio que minha mãe ouvia. Não pude deixar de me emocionar quando a mesma voz – um pouco mais velha e cansada, é verdade – continuava lá repetindo a hora. Até a música ainda era a mesma.
Com a caneca quente nas mãos fui até a janela e fiquei procurando os prédios vizinhos, suas janelas e antenas.
Hoje vou me atrasar.
***
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