Trecho de tese de Maria José Vicentini Jorente ( UNESP de Marília):
" Tecnologias, mídia, criação e hipertextualidade na transformação da informação em conhecimento interativo"
A tese inteira pode ser lida em postagem do dia 13 de outubro de 2009
6.3.2 - Espelho, espelho meu...
Com um número suficiente de olhos, todos os bugs tornam-se visíveis
Eric Raymond
Chama a atenção, primeiramente, na proliferação do número de blogs, a expansão das manifestações da auto-expressão e do universo subjetivo individual, no que pode ser reunido sob a tendência de ciberdiários, ou escrita-de-si. É uma escrita-de-si, porém, que leva em conta o público leitor, como visto, em multiplicação descontrolada. Apresenta-se, geralmente, com enfática preocupação estética quanto aos títulos, às formatações espaciais, à utilização de cores e de imagens ilustrativas estáticas ou em movimento, de música ou sonoridades diversas de significância para os autores dos blogs, possibilitando, estudos e análises intersemióticas bastante reveladoras do imaginário contemporâneo.
A Internet serve, assim, como uma forma de escoamento de discursos pessoais que foram há muito tempo inibidos pelos mass media. Trata-se, portanto, de uma apropriação social da web como forma de reeditar práticas antigas como os diários pessoais. Se estes eram, na maioria das vezes, privados, os ciberdiários aceitam a publicização do meio telemático e criam diários públicos pessoais (que, por sua vez, agregam-se em pequenas comunidades). A prática dos ciberdiários revela, como afirma Joaquín Romero, em “El futuro del Livro” que “a literatura é a arte da palavra e não do papel” (Romero, apud Moraes, 2001:93). Isso se encaixa muito bem na análise dos ciberdiários. (LEMOS, 2002, p.3)
Os diários, formas tradicionais da narrativa de si para si, tornaram-se populares pela promessa voyerista da revelação de segredos íntimos, seguindo a tendência do gênero romance a partir do século XIX. Borram as fronteiras entre o público e o privado, quando se transformam em subgênero literário. Na versão eletrônica dos diários, vocacionados geneticamente a se tornarem públicos, a espetacularização da intimidade se encontra com a necessidade de reconhecimento e de celebração do eu, em oposição à vida em uma sociedade da aniquilação do indivíduo, com a possibilidade da democratização de opiniões. Editados, oferecem uma face íntima encenada para ser consumida publicamente, um misto de mercadoria e nova forma artística, colocada à disposição, de forma disseminada.
O fato de ser um hipertexto eletrônico diferencia os ciberdiários dos antigos diários pessoais já que o formato hipertextual (atualização constante, de qualquer lugar e em tempo real, com utilização de links e outros recursos audiovisuais, de alcance planetário e imediato…) e a publicização não faziam parte das experiências com diários em papel. Revela-se, mais uma vez, o efeito da tecnologia sobre os fenômenos espaciais e as relações sociais: a privatização do espaço público e a publicização do espaço privado. No entanto, os diários online e os antigos diários pessoais são autoficção narcisísticas, reconstrução identitária, expressão de individualidades. (LEMOS, 2002, p.3)
Com uma função de hiperverificação[1], o privado e o público pactuam um revelado/oculto pelas suas máscaras de cena. André Lemos refere-se ao conceito de vizinhança que define a comunidade dos blogueiros, qualificando os diários como formas de sociabilização, mas também de expressão individual, que tem um papel de resistência contra a desespecialização e o enfraquecimento da esfera pública: “O termo aqui não é fortuito, revelando o caráter ao mesmo tempo individual e coletivos dessa prática. Isto reforça, nos meios eletrônicos, formas de sociabilidade agregadoras e empáticas” (LEMOS, 1999 apud LEMOS, 2002, p.3 ).
As tecnologias digitais têm impacto na estrutura cognitiva do indivíduo, como todas as tecnologias de comunicação. Partindo de Berger e Luckman (67), podemos afirmar que os indivíduos constroem suas realidades sociais, onde cada pessoa percebe, interpreta e define informação, objetos ou outros indivíduos a partir de sua própria visão da realidade. Neste sentido a realidade é uma construção social coletiva e ao mesmo tempo individual. (LEMOS, 2002, p.6)
Como também aponta Fernanda Bruno[2] (BRUNO, 2004), diversamente da modernidade, em que o elogio da subjetividade implicava na preservação e defesa de sua interiorização e privatização dos sentimentos, a contemporaneidade atua na projeção e exteriorização do eu, para sua concomitante construção pública; as identidades atualmente se constroem, interativamente, e no processo de interação: “Os dispositivos de visibilidade atuais oferecem o olhar do outro e uma cena pública numa realidade social onde o indivíduo só existe se ele é capaz de fazer saber que ele existe” (BRUNO, 2004, p.8).
Nesse sentido, vovó Neuza[3], blogueira, se descreve no “Quem sou eu” de seu blog: “[...] chego aos 78 anos saudável, integra o quanto se pode ser nessa idade, ativa, ainda entusiasmada e motivada a procurar novos projetos, novas atividades [...]” :
Amo livros, sei das novidades, dos lançamentos, mas não posso ter meus livros preferidos e necessários para me dar mais bagagem cultural. O dinheiro não dá [...]. Não abdico de um jornal (ou mais de um quando posso), de livros. Não dá para viver sem telefone, sem celular (contatos profissionais e onde meu filho me encontra nas minhas muitas andanças), sem computador, porque é nele que todo o meu trabalho se desenrola, sem Internet, que me liga ao mundo, sem uma TV a cabo para assistir coisas boas e não só TV comercial nitidamente dirigida (VOVONEUZA, 2008, p.1).
O blog de Neuza Guerreiro, a vovó Neuza, se inscreve na categoria escrita-de-si, coisa que a blogueira já fazia fora da rede; mas na Casa das Rosas, também conhecida por abrigar a biblioteca de Haroldo de Campos, ela começou a blogar no início de 2008, com uma quantidade invejável de postagens já feitas por volta de julho do mesmo ano. Nelas narra suas memórias, de forma textual e imagética: “[...] na verdade eu não sabia bem o que era um BLOG. E, o que é um BLOG? Não adianta procurar no Houaiss, no Aurélio, no Larousse ou qualquer dicionário. [...]”. Ela, professoral, informa a seus interagentes o que é o blog, tecnologia informacional que apenas começou a dominar. Reafirma a teoria de Fernanda Bruno no blog da oficina da Casa das Rosas, sede do projeto Escrevivendo[4], no qual depois da catarse inicial começou a blogar, incentivada pela mediadora Karen Kipnis e auxiliada tecnicamente pelo filho:
Flavio achou que o material que eu já possuía escrito deveria ter mais visibilidade, e que através do BLOG mais pessoas poderiam tomar conhecimento dele, uma vez que BLOGS são ferramentas atualmente muito difundias. Atualmente há no mundo uns 70 milhões de blogueiros. De certa forma fiquei envaidecida porque não são todos os filhos que querem a mãe mergulhada na modernidade, principalmente virtual e que sabem que lhes vai dar trabalho de consultas técnicas. E montamos o MEU BLOG (VOVONEUZA, 2008, p.1)[5].
Avalia o blog como ferramenta, declara que o usa porque quer partilhar, não manter suas memórias para si:
Gostei da nova ferramenta, novidade para mim. E fui postando, fui postando e me admirando que tanta gente passasse pelo BLOG DA VOVÓ NEUZA. São poucos os comentários, porque mesmo as pessoas que lêem não têm muito tempo, mas eu não ligo muito. Escrevo e posto para minha satisfação pessoal, de poder colocar no ar meus pensamentos, aquilo que pesquiso e aprendo e que quero partilhar. E principalmente partilhar minhas memórias. Testemunhar um outro tempo, uma outra sociedade, outros valores. Também vou passar a usar links com textos que podem agregar conhecimentos. (VOVONEUZA, 2008, p.1)
Em outro trecho, descreve as mudanças em seu cotidiano, demonstrando, sem dar a isto muita importância, que a nova tecnologia que utiliza interfere significativamente no cognitivo, transformando sua forma de acessar, vivenciar, refletir e mesmo entender a informação e o conhecimento:
E meu cotidiano foi mudando. Antes de sair geralmente dou uma olhada no SITEMETTER (medidor de visitas) e me assombro com o numero de visitas. Um BLOG simples como o meu, de alguém desconhecida como eu, em um dia da semana passada recebeu nada menos que 116 visitas. Em retribuição, tenho que encontrar mais tempo para também visitar e ler BLOGS de outros e não apenas navegar por eles. (VOVONEUZA, 2008, p.1)
Descreve também como Kipnis adotou a blogagem como sistema de difusão e produção de conhecimento interativo da oficina, por reconhecer as qualidades dos textos e a necessidade dos produtores de dividir seus escritos, publicando-os para muitos. Aposentados, recuperando-se de doenças graves, jovens buscando uma voz social, gente buscando recuperar a auto-expressão, esse é o perfil de quem procura a oficina da Casa das Rosas, que há três anos acontece na unidade de informação.
Karen postou produções dos participantes da oficina e, portanto disponibilizou os textos de todos para todos. Como eu, acho que ainda não se deram conta do quanto a ferramenta é útil para a divulgação de seus textos e como cria a possibilidade de se criar uma rede com comentários e troca de opiniões. (VOVONEUZA, 2008, p.1)
Guerreiro[6], formada pela Faculdade Ciências Biológicas da USP, e que foi professora durante 30 anos, auxilia, a título de colaboração, no andamento das comunicações entre os participantes da oficina; Quando Kipnis, em julho de 2008, assumiu outras funções na unidade, ela deu continuidade na oficina até que estagiários pudessem ser convocados na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo como continuadores, e fez uso do que considera ferramenta, também no que concerne a distribuição de textos dos colegas. Em 2009 ministrará curso in loco sobre o centro velho de São Paulo e as memórias da cidade[7].
Estamos substituindo a distribuição comum (os textos chegavam a mim e eu os distribuía) por ferramenta tecnologicamente mais eficiente. Ainda não temos prática, mas chegamos lá. No próximo módulo usaremos BLOGS mais freqüentemente e de maneira mais racional. Será uma ferramenta obrigatória. O BLOG será o espaço virtual ideal para a publicação dos textos dos participantes do ESCREVIVENDO. (VOVONEUZA, 2008, p.1)
Outros escreviventes têm caráter menos extrovertido do que o de Guerreiro, que já participara de outros eventos relativos à preservação da memória, como depoimentos do Museu da Pessoa, e no São Paulo, minha cidade[8], e havia sido entrevistada para o Jornal Nacional, ganhando certa notoriedade e traquejo.
No entanto, também criam seus blogs na esperança de reconhecimento; e quando se dá o esperado reconhecimento, a transformação no mundo subjetivo e de conhecimento do escrevivente é percebida por mudanças de atitude, criação de grupos de amigos bastante heterogêneos, aberturas de novos horizontes, encontros e reencontros. Os escreviventes passaram a se encontrar em reuniões fora da Casa das Rosas, reuniões que têm seus testemunhos em galerias de fotos no Flickr, filmes no Youtube e muitas atividades paralelas.
Bruna Nehring[9] traduz o sentimento coletivo. Também nos seus setenta anos escreve textos densos e descreve-se no Quem sou eu de seu blog:
[...] nós somos muito mais do que os outros acham que somos, do que aquilo que pensamos ser. Frequentemente, e aos poucos, quase imperceptivelmente, nos transformamos de acordo com o que é esperado de nós, abdicando de nossa espontaneidade. Nunca saberemos, de verdade, nem poderemos dizer, de verdade: eu sou tuuuudo isto? Eu sou sóooo isto?...Sem ter personalidade pública a proteger, assim mesmo, todos nós temos nossa pequena platéia: nosso núcleo familiar, nosso “entourage” de amizades, de trabalho, de lazer, ou de estudo, como este aqui, nesta sala barulhenta, finalmente clara.
Para que definir-me? Mesmo que conseguisse “a la Borges” uma descrição abstrata de mim mesma, só lhes passaria a imagem que eu penso ter. Para que, agora, dar a entender o que sou quando, um dia, poderei fazer uma descoberta muito mais valiosa? Cobrar de vocês: quem é a Bruna, além da imponência do seu nariz, do incômodo de sua surdez e da veemência de suas convicções?(NEHRING, 2008, p.1)
Nehring, que não é brasileira, e sempre viveu o estranhamento do estrangeiro fora de casa, declara estar se reconstruindo a partir de suas experiências com o grupo, em postagem de 23 de julho de 2008:
Karen, obrigada pelo presentão que é este blog: nunca teria chegado a merecê-lo sem o estímulo, os ensinamentos, o carinho, a perseverança que você me dedicou, especialmente com meus problemas de vírgulas, parágrafos, e a famosa, inútil, e ridícula gama dos porquês. Para estes últimos, sempre que possível, continuarei evitando usá-los, visto que (aqui já teria um...) eu sou cabeçuda, impertinente e altissimamente crítica para o desnecessário...Mas adoro você, Karen. Não importa o que acontecerá daqui para frente: Você será sempre uma das personagens mais marcantes de minha vida. Mesmo tendo idade para ser minha filha, não a coloquei no meu coração somente como uma filha, mas como o ícone a que minha mente recorre a cada vitória. Obrigada. (NEHRING, 2008, p1).
Criou-se uma rede de blogs dos escreviventes aparte os dos diversos módulos de cursos na Casa das Rosas. Nestes, muitos dos depoimentos no Quem sou eu de outros participantes[10] são impressionantes no grau de auto-exposição, e valeriam um estudo, por si mesmos, independentemente da sua referência aos blogs como nova tecnologia de informação e comunicação. São testemunhos públicos da fragilidade humana em ambientes hostis, como a sociedade contemporânea; que esta tecnologia de informação testemunha e faz saber a todos que se permitam um momento de silêncio para ouvir a voz do outro. Nessas catarses curativas, outras identidades se constroem enlaçando comunidades digitais, mas também presenciais como a dos Escreviventes.
[1] Termo referido por Hugh Hewitt em “Blog: entenda a revolução que vai mudar o seu mundo”
[2] Doutoranda participante do Núcleo de pesquisa em tecnologias de comunicação, cultura e subjetividade – ECO/UFRJ. Coordenadora do grupo de pesquisa CiberIdea. Autora de “Dispositivos de visibilidade e produção de subjetividade nas novas tecnologias de comunicação e de informação”, em que discute as relações entre subjetividade e visibilidade, que ganham novos contornos com as tecnologias comunicacionais contemporâneas. Tais tecnologias participam de uma transformação no modo como os indivíduos constituem a si mesmos e modulam sua identidade a partir da relação com o 'olhar' do outro, das táticas do ver e do ser visto. [...] “Esses novos dispositivos dão continuidade a uma tendência inaugurada na Modernidade: a incidência do foco de visibilidade sobre o indivíduo comum, aspecto decisivo na produção de subjetividades e identidades” (BRUNO, 2006).
[5] No escrevivendo, endereço na nota 14
[6] http://www1.folha.uol.com.br/folha/equilibrio/noticias/ult263u453811.shtml, http://www.memoriasehistorias.com.br/elenco.htm
http://familytreemaker.genealogy.com/users/g/u/e/Neuza-Guerreiro-de-carvalho/index.html
http://www.jardimdeflores.com.br/ESPECIAIS/A32figueiraglete.html
http://www.saopaulominhacidade.com.br/list.asp?ID=176
http://revistaepocasp.globo.com/Revista/Epoca/SP/1,,EMI19596-15571,00.html
[7] Ciclo de Palestras Interativas sobre o Centro de São Paulo na Casa das Rosas. Comanda por Neuza Guerreiro de Carvalho, o encontro – que começa sempre às 19h30 - prevê um passeio pela região central da cidade. Através dele, será contada a história do local. De acordo com a organização do evento, a caminhada será pelo Centro Velho, Praça da Sé e Adjacências, Pátio do Colégio, Mercado Central e Avenida São João.
[10] Ver excelente blog no endereço http://www.trechosetrecos.blogspot.com/
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