Entrincheirados em barracas opostas, eles se provocam, se xingam. Um brada “Timããããoooo”, outro anuncia que o próximo jogo será entre o Boca e o Meia Boca. Na barraca ao lado, um peixeiro aproveita para gritar: “Vamos, donas, levem pescada e sardinha, que o prato desta semana é peixe frito”. Escuto alguém comentar: “E não precisa nem fritar, o peixe já está frito”.
Qualquer coisa pode virar motivo de zombaria e riso entre eles, mas a relação com os fregueses é gentil. Uma senhora que escolhia mexiricas tampa os ouvidos com as mãos e pede que gritem menos, mas a “tchepa” já começou. Se alguém não quer ouvir gritaria, tem que chegar antes das dez, quando há menos gente e a mercadoria está melhor e mais cara.
Ao meio-dia em ponto começa o alarido maior. Tudo é anunciado aos berros. Os papeizinhos dos preços, presos a barbantes com pregadores, são trocados por outros com números menores. Começa uma função de empilhar frutas e legumes. “Três reais o monte”- grita um. “Quatro reais por duas caixas de morango”. As bananas maduras agora ficam mesmo “a preço de banana”: um real a dúzia. “Baciada de goiabas a dois real. Minha senhora, hoje tem goiabada de graça!”
A freguesia vai despejando as bacias de legumes e frutas nos carrinhos e sacolas. Quem consegue fazer as compras durante a “tchepa” faz uma boa economia. Só na feira tem dúzia de treze e todo mundo pode apalpar as frutas para sentir seu peso e textura. Uns, mais afoitos, chegam a enfiar a unha, para saber se está mesmo madura. Há quem pechinche e quem peça para experimentar, “para saber se a melancia está mesmo bem doce”. Os feirantes têm pressa de liquidar a mercadoria nessa última hora da feira: vender depois da uma e meia dá multa.
Trabalhador de feira dá duro. É como me diz um deles, com um sorriso até as orelhas: “Nóis é ferrado, mas nóis se diverte.” Chegam à aurora do dia, mas, no meio da madrugada, alguns já foram ao Ceasa, ao Brás ou ao Canindé para repor estoques. No lugar da feira, descarregam tudo, montam os balcões e as barracas de lona e expõem a mercadoria. As vendas começam às sete e meia e, às três da tarde, têm que levantar acampamento, deixando o lixo ensacado.
As feiras livres são uma instituição antiga em São Paulo. Começaram no século XVII e foram reconhecidas oficialmente em 1914. Nesse ano, havia sete feiras semanais na cidade. Duas eram no Largo do Arouche, outras duas no Largo General Osório. Em 1948, a prefeitura optou por instalar pelo menos uma feira semanal em cada bairro ou distrito da capital. Atualmente, há mais de 900 feiras semanais na cidade.
Há quem deteste as feiras. Além da gritaria, do empurra-empurra, dos camelôs, dos carrinhos de alumínio que dilaceram tornozelos e da afobação dos carregadores, as feiras atraem mendigos e gente desocupada, causam lixo e mau cheiro, atrapalham o trânsito e bloqueiam o acesso a várias ruas. Com tantos defeitos, é surpreendente que elas ainda resistam à crescente concorrência com os “sacolões” e as grandes redes de supermercados.
Onde é que o paulistano que detesta feiras vai para comprar coco fresquinho, ralado na hora? Ou temperos secos misturados conforme o gosto do freguês? Ao Mercadão da Cantareira? Fica longe demais para a maioria. Pergunto de novo: onde é que tem tapioca, pastel, caldo de cana e água de coco, tudo junto, perto de casa, a preço acessível e feito à vista do freguês? Será que há outro lugar onde a gente pode experimentar as frutas, sem nenhum compromisso de comprá-las? Ou formar um buquê na banca de flores, pedir para embrulhar para presente e, logo ao lado, conseguir peixe cortado na hora e à perfeição para sashimi? E ainda escolher balas de goma coloridas, biscoitos, queijos e azeitonas, vassouras e espanadores?
A feira é essa mistura caótica de cores e coisas, de aromas e sabores. É por isso que ela não desaparece de São Paulo: está tão entranhada em nossa cultura, tão enraizada em nossos hábitos, que apesar de reconhecermos seus defeitos, ainda gostamos muito dela.
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