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UM CONTO CHINÊS

Resenha

Titulo original: Un Cuento Chino

Produção: Argentina/Espanha 2011

Direção: Sebastián Borensztein

Cast: Ricardo Darín, Ignacio Huang, Muriel Santana

O cinema Argentino, ataca outra vez, ganhando, de forma merecida, impositiva e definitiva seu lugar na historia do cinema. Numa demonstração de maturidade que vem conquistando há mais de duas décadas, aparece mais uma vez em uma pequena grande obra de arte: pequena pela modéstia de sua produção, grande pelo resultado.

O diretor Borensztein, com a meticulosidade de um artesão-entalhador do século dezesseis, colocou em cena a loja, a casa, as manias, o isolamento, as rabugices de um homem solitário. Com a mesma meticulosidade, este ator fenomenal que é Ricardo Darín, construiu um personagem que consegue convencer e convencer-se de suas manias, seus isolamento, suas rabugices, escondendo até para si mesmo, uma delicadíssima alma de samaritano. Borensztein orquestrou de tal maneira o cenário e seus componentes corriqueiros, que qualquer cliente que entrasse naquela loja, ou penetrasse naquela casa, acharia tudo coerente, natural, intrínseco ao personagem. E que personagem! Vive cultuando e colecionando lembranças que não são dele, desde os bibelôs para a mãe que não chegou a conhecer, às noticias inusitadas que recorta compondo um acervo cuidadosamente encadernado. É naquelas noticias que viaja, imaginando locais, panoramas, acontecimentos. O inusitado do mundo que um dia entrará pela sua porta.

Ricardo Darín, não interpreta: idealiza, cria e acredita em suas falas, como se o filme não tivesse script nenhum, pois suas palavras saem “impromptu” da personagem que ele acabou “sendo”. Os DeNiros e os Depardieus da vida, tem agora um rival à altura, e dificilmente igualável.

No “Conto chinês” tudo tem o ar de que as coisas estejam acontecendo quando as vemos naquela tela. A naturalidade das poucas personagens, tão importantes quanto cada peça de móveis da casa do protagonista, quanto cada caixa de pregos de sua loja. Um jovem chinês de olhares, de tremores, de quase infantilidade. Uma mulher apaixonada que nem se sonha em produzir-se para visitar o homem que ama.

O cinema argentino está exportando sabedoria para os cineastas já universalmente conhecidos, admirados e premiados. A história que inspirou o filme, tão incrível quanto inusitada, foi divulgada por um noticiário da Televisão russa, e quem tem o habito de permanecer na sala após o final do filme e durante a lista dos créditos, terá na tela a reprodução do seu original no idioma. Mais uma vez Borensztein fez um trabalho de formiguinha, conseguiu o tape e o usou com o cuidado com que se tratam as peças de arte. E acabou criando mais uma.

 

 

 

NA CRISTA DA ONDA



Algo não consegue sair do noticiário, do negrito das manchetes, dos textos bem articulados dos telejornais, das conversas em todos os setores da vida urbana. Não é o nome da mais nova modelo virando atriz, nem mais um terremoto na Asia, nem a queda do dólar ou a crise econômica internacional. É só uma palavra que parece não conseguir deixar de fazer parte do nosso quotidiano. Corrupção! A palavra é sempre a mesma. Um polvo multi-tentacular que já se instalou em tudo e que, a cada semana, redescobrimos multiplicado-se num novo setor, em mais um, mais um, mais um.....Quantos foram só esse ano?

Se formos examinar a palavra, descobrimos nela quase um prefixo: “co” , como nas palavras co-laboração, co-ação etc., o que implica na intervenção de mais do que uma pessoa. Daí associarmos a corrupção ao suborno, pois no suborno alguém paga e outro recebe.

Antes tinha-se raiva da corrupção pelo simples fato de que não tinha-se acesso às “panelinhas” que garantissem os mesmos benefícios. Mas hoje acabou-se o hábito de admirar, reverenciar e invejar a figura folclórica do “malandro” e suas estrepolias. Acabou-se o tempo do “Gérson”, de levar vantagem. Mas não se consegue conter a corrupção. Pior: no processo da tentativa, infiltra-se outro elemento: a impunidade.

Corrupção existe em todo mundo. Desde o bíblico prato de lentilhas, os homens se corrompem e não houve civilização por mais florida e milenar que tenha conseguido extirpa-la. Existem, porém, algumas diferenças em outras culturas perante corrupção e suborno. Vimos nos Estados Unidos, um senador corrupto enfiar um revolver na boca e suicidar-se “ao vivo”; um membro de casa real européia (Holanda, Bélgica, Luxemburgo?..) demitir-se do cargo, pedindo publicamente desculpas por ter embolsado uma comissão sobre fornecimento de aviões e revertendo o valor a obras beneficentes.

Em contrapartida nossos homens públicos criam CPIs que levam anos para serem julgadas até a extinção do prazo legal e, no ínterim, os investigados continuam embolsando seus ricos soldos que não devolverão, mesmo que acabem considerados culpados. E quase nunca o são. Ao mesmo tempo em que políticos, ministros, e até jornalistas e economistas tentam vender sua profissão como uma cruzada em defesa da honestidade, o povo está finalmente começando a dar-se conta que pode, e deve, exigir honestidade e transparência.

Parece-nos então lógico e desejável, que ele – o povo - , emfim nós, também tenhamos que assumir nosso próprio compromisso de não ceder à “corrupção pessoal”, aquela que exercemos abrindo mão de princípios, consciência e respeito próprio. É – por exemplo – o pai que consegue um falso atestado de saúde que isente seu filho do serviço militar; é a filha do coronel que junta escova e procria sem casar-se para beneficiar-se da lei que lhe permite continuar a receber a aposentadoria do pai, enquanto for solteira. Nos dois exemplos as pessoas não deixam de colocar-se num legitimo direito legal, que porém não lhes oblitera a má fé e a desonestidade.

Está portanto na hora – e nas nossas mãos – resgatar a honra, punindo sim a corrupção, mas também abstendo-se dela.

 

 


O ROTEIRO QUE VIROU CRÔNICA



Há dias estou ruminando sobre o roteiro que havia-me comprometido a elaborar como dever de casa. Não dá.

Começar meu roteiro sentimental com o marco mais importante de minha vida quando cheguei ao porto caótico do Rio de Janeiro, entre torsos suados gritando uma língua desconhecida? Ou ao morar na praia do Flamengo sem praia, mas com um mar que, num arco magistralmente desenhado pela natureza, batia espumoso contra as pedras encostadas ao parapeito da calçada, soprando cristais em meus cabelos, na época castanhos e fartos. Ou lembrar as ruas de trânsito que eram espantosamente repletas de farmácias e sapatarias; onde um curioso habito construía edifícios grudados uns aos outros, ombro a ombro. Deve ser por isso que o carioca é um povo tão jovial e indiscriminadamente amigável: ele vive lado a lado, dia e noite com vizinhos, que tem todos uma propriedade indivisível em comum: o mar. Aquela era também a cidade da famosa Copacabana que aprendi a pronunciar corretamente enquanto os europeus ainda a chamavam Capocabana como fosse um marco geográfico. A Copacabana de areia fina, resplandescente, luminosa. E quente, quente demais para meus pés brancos demais e ainda tenros demais...

E minha última morada em Ipanema, justo no momento de ser catapultada à fama internacional pelos versos de um grande poeta.

Hoje vivo em São Paulo, nessa cidade-luz, que não é Paris mas que me fez sentir, de imediato, como se estivesse chegando de férias, pronta para conquistar o mundo. Essa cidade onde já vivi a classudissima Rua Augusta e a maravilhosa “Higienópolis”* que me rendeu uma crônica de que me orgulho muito. De lá, agora, minha entrada nos Jardins, provavelmente meu último reduto paulista.

Meu roteiro sentimental? Para criá-lo deve haver uma maneira diferente do que virar esquinas, descrevendo caminhos e marcos, históricos ou sentimentais, feito guia turístico. Tarefa desoladora especialmente para quem não tem cultura histórica para fazê-lo. Desde que não tenho mais carro, caminho muito no meu bairro e arredores. Aproveito minhas pernas, ainda obedientes, para ziguezaguear pelas ruas e por essas maravilhosas alamedas que descem saltitantes e arborizadas da Paulista, e que eu escalo – o termo realmente é escalar – quando vou à Casa das Rosas, aos Cinemas, aos Shoppings. Marcos?

Outro dia reparei, numa das alameda, o letreiro de uma casa, boa e bem construída, que hoje abriga um instituto de beleza: orgulhosamente ostenta os dizeres “DESDE 1975” , pouco mais de trinta anos de tradição, marco para garantir categoria e credibilidade. Ao seguir minha escalada, me descobri rindo de verdade: eu também ostento minhas credenciais, DESDE 1934. Sem letreiro...

Marcos? Estou num continente cujos marcos são, em sua maioria descartáveis, apesar dos esforços individuais de perpetuá-los. O que é um Marco! Um Masp decadente, de vidraças ainda mais opaca desde que lhes tiraram o azul e as nuvens de uma artista já esquecida; um palacete dinamitado em surdina para evitar sua desapropriação; um parque com esquilos escondendo-se entre árvores centenárias , onde só é seguro entrar com policiamento ostensivo; uma Casa das Rosas que só permanece Marco pela galhardia de um grupo de intelectuais ainda assim cerceados por limitações de um CONDEPHAAT ineficiente.

Minhas caminhadas me inspiram. E me levam à observação mais cuidadosa das coisas. Os edifícios de arquitetura arrojada esbanjam espaços internos e jardins bem projetados. Foi numa dessas subida que verifiquei com quanto zelo a nossa prefeitura obedece os cânones do civismo urbano: o rebaixamento das calçadas em toda esquina, até sarcástica afronta ao bom senso dos cadeirantes.

Mas tudo é muito bem cuidado, varrido, saneado. Para ser chamado Jardins, o bairro poderia ter canteiros: teve, uns anos atrás, quando fizeram a revitalização da Nove de Julho, o que me rendeu também “A flor”* o miniconto em homenagem aos agapantos brancos e azuis de reminiscências infantis. Eles não existem mais, freneticamente pisoteados, junto com grama e arbustos pelos apressadíssimos transeuntes. Essa Avenida merece uma segunda mão de maquiagem e, se possível, com manutenção.

Com tanto caminhar descobri que Marco hoje, para mim, é o que meu instinto registra como inusitado. Hoje tenho meu próprio GPS emocional que não preciso acionar, pois é ele que me conduz espontaneamente a admirar, acompanhar e reconhecer os Marcos para mim mais importantes e seus novos vizinhos. Estou falando de árvores.

Dois choupos muito jovens foram plantados no fim do ano passado na calçada em frente de uma prédio novo, na Al. Lorena. Duas árvores raras praticamente desconhecidas: seus ramos crescem desde a raiz, paralelos ao tronco, suas folhas quase redondas, claras e macias: apesar do seu aspecto final lembrar o desenho de um cipreste, seu volume é leve, quase transparente. Um já está alto o suficiente para roçar nos mil fios das mil tensões que correm entre os postes. Mereceriam uma placa: Populus Alba, DESDE 2010!

Dois Pinheiros na Paulista, um a poucos passos da Casa das Rosas, outro numa esquina perto da Campinas. E a nespereira – frutífera apesar de abastardada - ao lado do Instituto Pasteur. Há coisa mais inusitada do que uma mangueira no meio da Av. Nove de Julho, tão generosa que, no verão, passo debaixo dela com cuidado... Os Ipês amarelos e rosa das transversais; alguns plátanos com seus ouriços sem castanha; um Jambo-cereja a uma quadra de minha casa, tão modesto que só o descobri depois de quase 15 anos de vizinhança. David que o diga, não é amigo?

Uma amoreira alimenta ninhadas de sabiás-laranjeira no jardim do meu prédio. A poucos passos dela, uma jabuticabeira parece eternamente carregada de frutos: os pássaros sabem sugá-los deixando o invólucro intacto! Há uma tangerineira a caminho da feira onde compro meus “Tomates Sentados* que entrelaçou-se a uma árvore corriqueira, dessas comuns de calçada, mas que dá frutos cuidadosamente recolhidos pelos porteiros do prédio em frente. E há carambolas, com sua folhagem intensa, que roçam nas janelas da Sandra, não é minha amiga?

Talvez tudo isso não seja Marco para quem cresceu ao rededor deles, sempre fez parte da paisagem de suas vidas e não notam mais! Mas tenho uma descoberta mais recente, que meu GPS emocional registrou aos gritos, pois faz parte de uma paisagem que me é saudosamente familiar e por isso mesmo agora, e aqui, inusitada.

Desviei-me do caminho numa corriqueira ida a Banco, e deparei-me com ela. Numa alameda tropical, uma intrusa. Desconhecida. Reconhecida. Lá estava ela, majestosa apesar de sua pequenez, mas rígia, com seus curtos troncos retorcidos, seus galhos franzinos, sua folhas miúdas, cinzentas, pontudas. Majestosa. Imponente. E enternecedora.

Uma Oliveira.



* publicados no brnehring.blogspot.com

 









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