Não levou que alguns segundos. Arremessar o pneu direito contra o meio fio, engatar a marcha a ré, desligar o motor. E lá estava eu, no trecho mais íngreme da Haddock Lobo, assombrada, conturbada, de repente pequena e insignificante. Poderosa, superior mas insignificante, pequena, envergonhada. Uma dondoca de merda trancada num carro, com mil amostras de madeira, cartelas de cores, tramas e urdiduras artesanais transformadas em tecidos preciosos, exclusivos, caríssimos. Tudo ao meu alcance para decorar um apartamento novo, num país onde o dinheiro corria a rodo apesar de uma ditadura acachapante, onde operários morriam nas obras sem que ninguém notasse.
“A Construção” estava alí nos meus ouvidos, aos meus pés, socando a boca do meu estômago com seu arranjo repetitivo, angustiante, agressivo. Me vi colocada num mercado persa onde ninguém se entende, onde as mercadorias valem mais do que os seres humanos. Num circo onde tudo é estupefação, onde tudo é fácil ver, receber, divertir-se, só por um pequeno tributo na entrada, onde o extenuante suor dos artistas é camuflado no sorriso, no riso, no milagre da alegria.
Vão repetir a música, pensei, têm que repetir, têm que repetir. Fiquei alí até conseguir outra estação de rádio de onde ela, "A Construção" cresceu de novo, com sua atmosfera veemente, seus ruídos de rua, seu galope dirigido a um indefectível destino trágico.
Não era só uma canção: era roteiro, palco, cinema, pintura, arquitetura, projeção fantástica. E sinfonia. Os refrões, verdadeiros estribilhos, repetiam-se ao mesmo tempo em que as palavras vinham sendo substituídas por outras; em que verbos vinham sendo alterados por outros, conseguindo, com isso, ampliar, enriquecer, transformar o personagem de humano para máquina, de material para etéreo, de ingenuo para divino. Da modéstia inicial, ei-lo enobrecido, mesmo no seu final de pacote bêbado.
A indiferença do transito, dos transeuntes, dos motoristas que continuavam - como eu - ignaros do fato que uma vida é mais do que uma simples construção.
“A Banda” aquela marchinha simples, um tanto sentimentalóide e que muitos anos antes eu mesma havia considerado um pecadilho do autor, de repente, agora, junto com "A Construção", adquiria um significado especial, como se fosse uma toada para acompanhar o destino final daquele ser comum, operário.
Eu provara, quase vinte anos antes, a mesma sensação de humildade perdida ao ouvir os versos premonitórios do samba “Lata d' água”. A sociedade canta mas não se conscientiza.
Obrigada, Coutinho, por oferecer-me a cadeira. Mas não me sentarei nela. Não sei cantar, e prefiro ceder meu lugar para o Chico Buarque com seu olhar azul e seu meio sorriso carnudo: a quintessencia da humanidade, cujas canções, - versos e músicas - não parecem encontrar par no cancioneiro do mundo.
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