Da caixa de som, podia-se ouvir o chiado da agulha escorregar por entre as linhas do vinil. Da cozinha, o cheiro de arroz refogado, um fio de fumaça que desprendia da chaleira, e a água da torneira acariciando os talheres e as mãos de minha mãe. E da vitrolinha vermelha, que mais parecia uma caixa de brinquedo, soava canções que embalavam as noites dos meus irmãos.
Aquele tênis Conga medonho acompanhava-me diariamente na ida à escola. Eu namorava o All Star cano alto de meninos e meninas do ginásio. E sonhava acordada em abraçar o mundo.
O céu era mais azul nessa época, os raios de sol se infiltravam pela casa e deixava tudo mais vívido, principalmente o sorriso do meu pai. Ele vinha para o almoço com brincadeiras de pega-pega e esconde-esconde. Tudo com gosto de sorvete, sabor aventura. E ele oferecia disposição para enfrentar o perigo da esquina. O sinal da vida nunca estava fechado para ele.
O relógio do país batia descompassado por causa da repressão. E o relógio do meu mundo começava a aflorar em compasso com o relógio-realidade: primeiro beijo, bailinhos, estudos e trabalho.
Nesse trajeto, enfrentei todas as esquinas com suas retóricas, tão tortas. Vejo nos noticiários discursos inflamados que não dizem nada, tentam camuflar a desordem, a corrupção. Deito um olhar já amadurecido diante dos fatos. O reflexo do espelho aponta os fios brancos que insistem em aparecer.
Não falo do meu grande amor, porque ele ficou dobrado em alguma página do pretérito. Eu não o esqueci. Eu o perdi. Não tenho mais ídolos, mas continuo namorando o All Star. Os discos estão imersos na memória da estante da sala. Minha única filha é a escrita timbrada em textos aqui e ali. Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração, e continuo vivendo como meus pais.
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Tags: canções, escrevivendo, escrita., leitura, oficina
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