Se lembra da fogueira
Se lembra dos balões
Se lembra dos luares dos sertões
A roupa no varal, feriado nacional
E as estrelas salpicadas nas canções
Se lembra quando toda modinha falava de amor pois nunca mais cantei, oh maninha Depois que ele chegou
Se lembra da jaqueira A fruta no capim
Dos sonhos que você contou pra mim
Os passos no porão, lembra da assombração
E das almas com perfume de jasmim
Se lembra do jardim, oh maninha coberto de flor
Pois hoje só dá erva daninha no chão que ele pisou
Se lembra do futuro que a gente combinou
Eu era tão criança e ainda sou
Querendo acreditar que o dia vai raiar
Só porque uma cantiga anunciou
Mas não me deixe assim, tão sozinha a me torturar
Que um dia ele vai embora, maninha prá nunca mais voltar...
"Maninha", de Chico Buarque
Aprecio as letras do Chico Buarque; “Letra e Música”, volume I, da Cia das Letras. Todas as noites, abria o livro para ninar meus filhos, cantando músicas infantis como Bailarina, João e Maria, História de uma Gata, Minha Canção. Embora eu desafinasse, desafiava tanto a voz e as letras que estas despertavam encanto, estranhamento e diálogo até nas chamadas músicas infantis, que amamos. Hoje, como é de conhecimento geral, há estudos apontando que a memória da criança se inicia já na concepção e a importância dos sons e da poesia no desenvolvimento dos bebes.
“Nós gatos já nascemos pobres,
porém já nascemos livres”
Após dez minutos, minhas crianças ressonavam felizes, mesmo com: Construção, Roda Viva ou Afasta de Mim este Cálice.Numa destas noites iniciei a música Maninha, mas lágrimas escorreram incontroláveis. A canção lembrava minha irmã Lina, que “ele levou pra nunca mais voltar” , assim como os momentos vividos com balões, luares, perfume de jasmim, erva daninha e histórias de assombração.
A lembrança de Lina segurando minha filha de dois meses, gorgolejante e sorridente, em seus braços enquanto dizia:- “Oh, minha linda, vou costurar muitos vestidinhos e satisfazer todos os seus desejos...”, plasmara para sempre. Sem suspeitarmos, a tragédia assombrava aquele momento lúdico e feliz.
Lina trabalhava como contabilista na zona sul de São Paulo, morava só e cultivava algumas amizades duradouras. Durante minha licença-maternidade, aos finais de semana, Lina comparecia e preparava canja e alimentos para fortalecer meu leite materno, pois além de costurar em suas horas vagas, cozinhava deliciosamente. Todas essas qualificações do lar foram adquiridas quando ficamos órfãos de mãe. Aos treze anos, responsabilizara-se pelos cuidados dos três irmãos e de um pai aniquilado e abatido.
Como se todo o amor entregue a nós fosse em excesso, um luxo, a Morte resgatou-a e a alforriou numa sexta-feira, 28 de agosto. Atropelada, “se acabou no chão, como um pacote flácido”: faleceu na entrada do hospital, num fim de semana, evitando que amigos não faltassem ao trabalho para seguir o féretro; e como uma boa representante nipônica, sem perturbar o setor terciário; ainda que “atrapalhasse o tráfego”.
Por que a música Maninha emociona-me tanto? Lina era feliz com sua fé inabalável que a vida oferecia. Mesmo com as dificuldades, usufruíamos da natureza pródiga, ensolarada nos córregos e pomares, acompanhada de seu sorriso amigo. E, anos depois, ainda 'saboreio' esta canção, regada com bolo de banana crocante e torta de creme de leite, sabores inigualáveis, que nenhum “expert” da cozinha seria capaz de reproduzir, como no conto “Omelete de Amoras de Walter Benjamin”.
OMELETE DE AMORAS (Walter Benjamin)
Era uma vez um rei que chamava de seus todo poder e todos os tesouros da Terra, mas apesar disso não se sentia feliz, e a cada ano se tornava mais melancólico. Então um dia, mandou chamar seu cozinheiro predileto e lhe disse:
"Por muito tempo tens trabalhado para mim com fidelidade e me tens servido à mesa as mais esplêndidas iguarias, de modo que te sou agradecido. Porém, desejo agora uma última prova do teu talento. Deves me fazer uma omelete de amoras igual àquela que saboreei há 50 anos, em minha mais tenra infância. Naquela época meu pai travava guerra contra seu perverso inimigo a oriente. Este acabou vencendo, e tivemos de fugir. E fugimos, pois, noite e dia, meu pai e eu, através de uma floresta escura, onde afinal acabamos nos perdendo. Nela vagamos e estávamos quase a morrer de fome e fadiga, quando, por fim, topamos com uma choupana. Aí morava uma velhinha que amigavelmente nos convidou a descansar, tendo ela própria, porém, ido se ocupar do fogão. Não muito tempo depois estava à nossa frente a omelete de amoras! Mal tinha levado à boca o primeiro bocado, senti-me maravilhosamente consolado, e uma nova esperança entrou em meu coração. Naqueles dias eu era muito criança e por muito tempo não tornei a pensar no benefício daquela comida deliciosa. Já era rei quando mais tarde mandei procurá-la. Vasculhei todo o reino. Não se achou nem a velha nem qualquer outra pessoa que soubessse preparar a omelete de amoras. Agora quero que atendas este meu último desejo: faze-me aquela mesma omelete de amoras! Se o cumprires, farei de ti meu genro e herdeiro de meu reino. Mas, se não me contentares, deverás morrer."
Então o cozinheiro disse: "Majestade, podeis chamar logo o carrasco. Conheço, é verdade, o segredo da omelete de amoras e todos os seus ingredientes, desde o trivial agrião até o nobre tomilho. Sei empregar todos os condimentos. Sem dúvida, há também o verso mágico que se deve recitar ao bater os ovos, e sei que o batedor de madeira de buxo deve ser sempre girado num só sentido. Contudo, ó rei, terei de morrer! Minha omelete não vos agradará ao paladar. Jamais será igual àquela que vos veio pelas mãos da velhinha. Pois como haveria eu de temperar a coisa com aquilo tudo que nela desfrutastes e que vos deixou, senhor, a impressão inesquecível? Faltará o perigo da batalha e o seu picante sabor, a proximidade do pai na floresta desorientadora, a emoção e a vigilância do fugitivo perdido. Não será omelete comida com o sentido alerta do perseguido. Não terá o descanso no abrigo estranho e o calor do fogo amigo, a doçura da inesperada hospitalidade de uma velha. Não terá o sabor do presente incomum e do futuro incerto".
Assim falou o cozinheiro. O rei, porém, calou-se um momento e não muito depois consta haver dispensado dos serviços reais o cozinheiro, rico e carregado de presentes.
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Tags: canções, escrevivendo, escrita, leitura, oficina
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