Projeto Escrevivendo

São Paulo, 28 de março de 2011.

 

 

        Cássio,

 

              Cheguei mais cedo do serviço, hoje, resoluta. Enquanto você estava fora, arrumei em duas malas e uma mochila algumas peças de roupas e livros.

 Quanto aos livros, peguei somente aqueles relacionados à minha área de trabalho.

              Não dá mais. Eu não suporto mais a tirania das emoções que tanto me dilaceram. É difícil conviver com um homem de 50 anos, que não sabe o que quer

realmente da vida. Vive de bicos, de sonhos anêmicos e mal nutridos. Você é o meu oposto. Eu vivo de energia, de movimento, nado sempre contra, contra a corrente,

contra a maré, contra tudo que queira me impedir de realizar algo. E, você? O que faz?

              Não quero mais. Lá fora um frio áspero. Apanhei lá no guarda-roupa aquele casaco que você ganhou do seu amigo chileno, mando devolver depois. Está

frio. Está frio dentro de mim, entende? Esse apartamento de poucos móveis, com livros e discos espalhados. Você sempre tão relaxado. E, eu, que cheguei a fazer tantos

planos e tentei concatenar matrizes semelhantes para nossa relação. A matemática não deu certo, o resultado zero. Você zero.

              Sempre considerei fútil "discutir a relação", mas com você deveria. Você tão na sua, tão umbiguista. E, algumas vezes, tão egoísta até mesmo no sexo, e nos

 últimos meses passou a economizar em carícias.

              Para mim não dá mais. Meu corpo necessita de recesso, e meu coração, de sossego.

              Não acredito mais em histórias de amor. Nesses cinco anos de convivência, percebi que com o tempo as pessoas esmaecem. Se algum dia você sentiu algo por mim,

certamente, esse "algo", que não consigo chamar de sentimento, ou o que quer que valha, ficou perdido nalgum canto desse apartamento, tão justo e apertado quanto você.

E tão nada.

              Cássio, bastou. Dei ração o suficiente para a Nininha, porque ela não parava de miar desde a hora em que cheguei. Pelo menos cuide bem dela.

              Como você costuma chegar tarde do serviço, as chaves ficam com a D. Teresa, do 304, do final do corredor. Ela é muito prestativa e vai dormir só ao amanhecer.

              Uma das coisas que pesaram em minha decisão foi o fato de você nunca ter me assumido para a sua mãe, protelando, protelando. Aliás, você nunca me assumiu de

verdade, a não ser é claro, exibir-me para os seus amigos da produtora, como um troféu conquistado.

              Tomarei outros rumos e outros cafés pela cidade adentro e afora. A mochila e as malas pesam, porém minha alma soltará os grilhões que me prenderam durante

tanto tempo a você.

              Abandono o apartamento ainda mais vazio, agora, sem meu afeto e o companheirismo de outrora.  

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Tags: cartas, escrevivendo, escrita, leitura, oficina

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Comentário de Samia Schiller em 15 maio 2011 às 9:08
Ô, que carta de despedida mais profunda, avaliando porque está partindo, a personagem tenta colocar um fim nesse relacionamento tanto para ela quanto para o Cássio. É um ponto final, um pouco magoada, mas com coragem  a moça parte. Aposto que o Cássio ficou espantado.

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