Projeto Escrevivendo

Crônicas de Danilo Lago - Nossas Letras SESC Belenzinho 2016

Por Erica Franco e Renata Guerra

Coordenação: Karen Kahn

FRETADO

 

    tinha esquecido o guarda-chuva em casa. pra fugir da garoa, enquanto esperava o ônibus, me escondi debaixo do toldo de uma igrejinha enterrada atrás do ponto.

    meia, uma, uma hora e meia e nada, nem sinal.

    na igrejinha, luzes acesas. dava pra ouvir um cara dizendo pro povo se levantar, sentar, repetir umas palavras pra quem estivesse ao lado, ofertar. prometia os céus, uma cdhu no paraíso, um zero quilômetro na terra, transformação de vida, conversão, cura, de pecador pobre e falido a empresário próspero, um santo empreendedor.

    o segurança, obreiro, me encarou. sorri, meio tímido, meio atordoado. ele destroncou a cabeça. foi quando algo dobrou a esquina. quebrei o pescoço, pude ver os faróis e ouvir o gemido do motor. vinha na minha direção.

    fiz sinal com o braço e dei a última secada na igrejinha. transbordavam olhares sobrecarregados, mãos atrofiadas, bocas amordaçadas. nos olhos de um homem engravatado, segurando um microfone com as duas mãos, vi gigantescos cifrões.

    o ônibus parou, recolhi o braço, embarquei. pedi pro motorista arrancar, apertar o pé no acelerador, me levar pra outro mundo, longe dos falsos profetas, distante de gente que lucra com corações dilacerados.

    depois de uma cota perambulando pela cidade, o motorista disse pronto, chegamos, e abriu as portas. desembarquei. li a placa pendurada no poste, Avenida Pires do Rio, Cemitério da Saudade.  

 

 

Danilo Lago

  

eu já tive

um

 

 

 

 

 

 

 

    não importa se toda memória não passa de imaginação. tô falando isso porque um amigo tava reclamando do aparelho celular dele, bem mais novo que o meu, dizendo que era uma porcaria, feio, lerdo, pouca memória, poucos aplicativos, câmera de baixa resolução, ninguém mais queria um daquele, mó vergonha de mexer nisso no meio dozotro.

    coisa que eu discordava. tá certo que não era o último lançamento do Iphone, mas quebrava um galhão. o celular dele tinha até acesso à internet, 3G, GPS, Facebook, WhatsApp, essas coisas que eu nem sei escrever o nome direito e que servem de isca pras Casas Bahia da vida.    

    falei pra ele aquietar o facho, seu aparelho ta mó de boa, funcionando, melhor que muito celular por aí, não vale a pena gastar mais que dois salários com um novo.

    quem disse que ele deu bola. e ainda ficou falando mal do meu. isso me fez lembrar que eu já tive um velho Siemens A52 que salvou a vida de um jovem, frágil e mal-educado smartphone, há dois anos, quando ainda trabalhava num escritório de despacho aduaneiro, na Paulista.

    às vezes, saía tarde de lá. naquela noite eu e mais dois funcionários tivemos que esticar. um terminando de emitir Nota Fiscal, eu aguardando a Nota emitida pra fechar o malote e o motorista do transporte aguardando o malote, com a Nota, lacrado. o documento precisava ser encaminhado no mesmo dia pra filial de Santos. exigência do chefe.

    assim que o cara emitiu a Nota, botou o seu smartphone no bolso e foi embora sem dar tchau. guardei a Nota, lacrei o malote às pressas e liberei o motorista. eu não via a hora de ir pra casa, tomar banho, jantar, dormir... peguei a mochila, marquei o ponto.     

    tinha acabado de dobrar a esquina quando vi o colega da Nota, parado na testa da guia, esperando o semáforo de pedestres abrir. nisso, um cara que eu não conhecia, e que vinha no sentido contrário, ganhava a sua direção, chegando cada vez mais perto.

    bem na hora do bote, as mãos fora do bolso, o veneno no ar, o cobra bateu os olhos em mim. desistiu do colega da Nota e se arrastou na minha direção. o semáforo abriu, o smartphone conseguiu atravessar. não tive tempo de dar um passo atrás. é o seguinte, malucão, passa o celular, tendeu, tô armado, e se gritá o bagulho vai ficá bichado pro seu lado.

ao ver o meu Siemens A52, não pensou duas vezes, esse celular é seu, quê que é isso cara, esse treco ainda funciona, nem minha bisavó tem um aparelho tão velho assim, cê é museu, é museu que vive de passado, cria vergonha e compra um novo, rapaz, larga o escorpião do bolso, tira um lá na loja, é mó fácil, cê trabalha com cartão de crédito, então, parcela no cartão, em até 10 vezes sem juros e sem entrada, faz o seguinte, anota o meu número aí, não, melhor, tó, fica com meu cartão de vendas, aí tem o meu telefone, e-mail, site, zap, daí quando cê fô comprá um aparelho novo, entra em contato comigo, a gente faz uma cotação, orçamento,  vai negociando, sem dor de cabeça, óquei, agora pode guardá aí o seu A52 de volta, tá tudo bem, vai de boa, pensa nisso que te falei, pensa com carinho, mas pensa mesmo, tá, e

desculpa qualquer coisa,

vai com deus.

 

 

 

                                                                                                                                                         Danilo Lago

Exibições: 70

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