DE COMO VIVER JUNTO
Fabiana Turci
Há uma formulação em Borges de que o livro, se não for aberto, não passa de um bloco de couro, costurado em páginas insignificantes. Ele diz que, no entanto, acontece uma coisa mágica quando o abrimos: o livro se modifica a cada instante. Em cada leitura, resignificamos, não apenas as palavras, mas o mundo a nossa volta e o mundo dentro de nós. Ler é uma atividade permeada de desejos. Do desejo de escrita ao desejo do encontro, a leitura nos coloca em contato com o vivo do mundo e, diante deste convite, vem, inevitável: a falta de espaço, de diálogo, o mundo comprimido, fragmentado, administrado, com o qual as palavras se debatem e nos desafiam – a constituir um espaço respirável, a ocupar a porção que nos cabe e incutir, no fluxo da vida, o do nosso próprio sentir.
Este é um relato pessoal. De como passar da solidão do verso para o aprendizado do viver junto. Como qualquer relato, este carrega as minúcias e desvios próprios da caminhada subjetiva. Mas isso não o torna menos válido, nem mais concreto. Talvez a verdade da palavra do relato seja a de que ele poderia servir a qualquer um e a ninguém, ao mesmo tempo em que ocupa um lugar. E é desde este lugar – muito menos testemunho, testemunha do que presentificação e ocupação de um Espaço, já meu – que gostaria de dirigir esta fala.
Conheci alguns caminhos de e para as letras. Um, mais óbvio, dentro de minha própria casa – que se não cumpre o ideal das casas burguesas com suas vastas bibliotecas, tem sempre silêncio e papel. Quando se vive assim, fazendo amor com as palavras, natural é que se carregue, ao cruzar a porta, essa paixão. Assim é que, vezenquando, o Outro nos aparece e nos cruza, com seu amor e com suas palavras – o primeiro e sempre caro encontro. Fui procurar, também, fazer da paixão trabalho, o que se deu no meu ingresso nos cursos de Letras e Filosofia. Não seria exatamente justo dizer que, nesses três caminhos, não encontrei o que procurava. Cada espaço nos dá e nos exige o que lhe é próprio, mas as palavras ocupam tudo, sem distinções. Se a casa, como lugar da intimidade, permite a liberdade da escolha – de abrir e fechar os livros em função somente da quantidade de prazer, de estender o tempo em direção ao lápis e fazer da poesia relógio – a Academia, como instituição, nos obriga a aceitar as escolhas de outrens e de fazer dessas escolhas ferramenta, instrumento. A casa, por outro lado, nos impõe a solidão de paredes brancas, muitas vezes insuportáveis, onde falta exatamente o Outro, com os desafios, os universos, os olhos perguntantes... Seria justo dizer que cheguei até a Casa das Rosas não por uma ausência de fundamento, mas por outro tipo de falta, fundamental: de escuta e de conversa.
Digo, também com justiça, que resignifiquei as manhãs de sábado, a Avenida Paulista, tão austera, e minhas próprias palavras. Encontrei um espaço pautado no afeto e na escuta, onde as propostas – estimulantes, inovadoras, desafiadoras – geravam textos que transformavam não apenas o nosso pequeno espaço, mas eram catalisadores de mudanças profundas, íntimas, indizíveis. Se o Escrevivendo cumpre o necessário propósito de instrumentalizar e embasar a leitura e a escrita, tornando seus “alunos” mais críticos e mais responsáveis por sua atuação no mundo, acredito que cumpra algo que não se dá como uma finalidade expressa, mas que acaba por ser sua conseqüência necessária: o escrevivendo devolve, de muitas formas, a inteirez da gente.
Como relato, digo que encontrei, nesse espaço como em nenhum outro, ouvidos atentos e exigentes, muita generosidade e uma quantidade infinda de centelhas. Mas sou obrigada a relatar, também, aquilo que vi: um espaço que personifica meu ideal de democracia, espaço heterogêneo cujo potencial de transformação, em muitos sentidos, representa a essência mesma daquilo que gostaríamos de ter como educação. Algo que ultrapassa as fronteiras de conteúdos, de ideologias, e nos torna, profundamente, quem a gente é.
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