Projeto Escrevivendo

Segunda rodada dos textos produzidos para a oficina, desta vez a partir do inventário poético de um colega, nas trilhas de João Cabral. Divirtam-se!

.

'RENATA REGINA'

(BRUNA NEHRING)

.

RENATA: Poeta de mortes, partidas, tradições, perdas, sofrimentos, solidão

.

REGINA: Traduza-se em Rainha para que as fendas das suas muralhas rendilhadas de ameia, se abram a cores e flores.

E que as distâncias venham pelos merlões e os iluminem jorrando-lhes pés de otimismo e mãos de esperança.

.

Poemas nascerão em outras rimas.

Rimas nascerão em outro ritmo

Ritmos nascerão em novo abraço.

É assim que muros caem.

E é assim que sonhamos livres.

.

.

Inventário de alheia poética

(Teofilo Tostes Daniel)

.

(…)

.

borboleta
Ente híbrido, entre animal e papiro, em cujas asas estão inscritas respostas para perguntas que nunca foram feitas. Trata-se de um palimpsesto que testemunhou a escritura de todos os absolutos e traz, em diversas camadas, a grafia do indizível. Ao experimentar o estado de solidão existencial, conhece a intimidade da impermanência, caminhando em direção ao outro da forma. Ela não nasce ente híbrido, mas aprende a tornar-se aquilo que se é. Sua existência é também o seu devir. Certo sábio urbano, disfarçado de criança, ao visitar o campo e vê-la pela primeira vez, definiu-a como uma cor voando.

.

(…)

.

flor
Ente vegetal que é, na verdade, uma borboleta imóvel e fixa. É frequentemente descrita como um códice cujas folhas acabaram de encarar as mil e uma faces noturnas do silêncio. Nascida do cruzamento entre o encanto e a finitude, tornou-se um tipo de lugar-comum poético, como a lua e o amor. Mesmo assim, certos poetas contemporâneos ainda recorrem a ela. Um poeta gauche certa vez descreveu uma estranha espécie nascida no asfalto. Sim, ela é dividida em várias espécies. Uma delas, habitualmente sacrificada e ofertada às dúzias num ritual em favor de amantes ou amadas, teve seus cinco motivos cantados por uma poetisa moderna e atemporal. Outra, imponente e xântica, conserva ainda algo de borboleta, por se mover no sentido da luz, e aparece convulsa e obsessivamente nas telas de um atormentado pintor que se matou quase dois anos depois de cortar a própria orelha para oferecê-la de presente a uma prostituta.

.

(…)

.

história
Ente conceitual formado por um encadeamento de instantes ordenados de modo a constituir uma narrativa. Quando escrita com inicial maiúscula, trata de realidades ou instantes pretéritos pretensamente acontecidos, o que faz com que seja considerada verdadeira. Os supersticiosos costumam atribuir sua autoria à irmandade formada pela solidão, a serenidade e o silêncio.

.

(…)

.

Paracoccidioides brasiliensis

.

Poetas são, às vezes, arbitrários.
Elegem sem motivo certos seres
e os enchem de poéticos poderes,
inscrevendo-os em raros relicários.

.

Porém, uma cientista que também
é poeta não pode distinguir
dos entes de poético existir
um certo fungo conhecido bem.

.

Bem conhecido dela, pois poetas
se consideram sempre bons estetas.
Preferem borboletas e condores.

.

Mesmo por males têm predileções.
Sabem tudo das próprias depressões,
mas nada dos imunodepressores.

.

(…)

.

solidão
Ente sentimental que o senso comum associa a tristeza, amargura, angústia e outros entes sentimentais negativos. Ela, no entanto, é uma condição da existência, formando com a serenidade e o silêncio uma antiga irmandade que regia a destinação de deuses, homens e outros entes. Entre os antigos, foi identificada como Cloto, a fiandeira. Os demais entes dessa irmandade também conheceram outras nominações: Láquesis era aquela que mansamente enovelava o fio para sortear o nome de quem teria o silente encontro com Átropos, a quem cabia cortar, inflexível, o fio tecido por Cloto. Há quem sustente que o sozinho de cada ser seja o fundamento de seu sentir.

.

(…)

.

verdade
Ente conceitual constituído a partir de uma narrativa pela qual as pessoas podem jurar.

.

(…)

.

.

Pender

(María Cecilia Fernández Uhart)

.

Guardado na caixa

sem música

sem som

submerso em finitude

transparente de vida

ausente de rosas

em concretude inerte

que arrebata a criação

suspende-se o corpo

humano

da pretensa

eternidade.

.

.

Sonho

(Jonas Moraes)

.

O mar veio

Em sua intensidade

Suas ondas batem

No meu peito

Acordo

Entrando num mundo

De magia

.

É o desejo

Pelo teu corpo

Que faz sentir

E voar

Para além do sol

E do horizonte

.

Sampa 09.06.2010

.

.

OS SENTIDOS

PARA UMA ESCRITURA

(Benê Dito Deita)

.

AÇÕES

.

Veios e veias

Assaltando e saltando.

Roliços.

Em salas, salões.

Em céu aberto.

.

Avolumando-se

Da vastidão do

Azul.

.

Cumulando-se

De ingredientes.

Para a provisão

Dos sentidos.

.

INGREDIENTES

.

I

.

Fitas largas

Que se desenrolam.

Contínuas.

Coloridas de histórias.

.

II

.

Todos os pratos.

Mas sempre profundos.

Lambidos no silêncio.

Entre as linhas, as palavras,

No contorno das letras.

.

III

.

Todas as curvas

Onde a sombra suplique:

“Toquem o contraste,

O avolumar que pulsa.”

.

IV

.

Vários tons,

Que voem efêmeros.

Que pousem eternos.

A enlevar-lhes quietos:

Notas, não valores.

.

V

.

Novos ares se soprando

Na busca de aconchego,

Caminho de narinas levianas,

Onde caiba a imaginação.

.

Modo de servir

.

Self-sevice:

Para os espíritos que deles

Souberem se servir.

.

Em mesa posta de sagrado ritual,

.

Na mesa mesmo,

Ou sobre a cama,

Talvez no ônibus,

Ou em frente ao monitor.

.

E em conversas de profano improviso

.

Entre bebidas cheias de gás,

Coloridas, seguras por fios,

Para impedir total devaneio.

.

E ainda farão cócegas

Imunes da formalidade

Das palavras.

.

E assim beber

De toda essência

Que faça sentido.

.

.

(Sandra Schamas)

.

Era uma muralha de pedras que cercava o vilarejo abandonado. Uma cabra arisca, encarapitada no penhasco, mascava, olhava e não me via. O céu azul e um frio a entrar pelos poros congelando a linfa me fez pensar o que estava fazendo ali, sozinho. O som dos insetos e as minhas passadas no capim atiravam pedregulhos montanha abaixo. Meu coração cansado custava a cumprir seu papel. Continuei curioso a buscar um morador fugidio, uma gata parida, um abutre, uma carcaça, um alambique em desuso. Nada.

.

O vento trouxe um leve aroma de lavanda e a cabra arrancou uma touceira de capim, mastigando o mato seco como se fosse manjar. Uma coruja insone piou triste, alto. Achei que era mau agouro e resolvi voltar escorregando na escarpa e espalhando o cascalho. Sei que superstição é mentira, bobagem, mas nunca mais voltei lá.

.

.

SINToma

(Cristina Fonseca Monteiro)

.

Não leve nada agora

Deixe tudo como está

Feche os olhos

Busque apenas sentir

Sua única canção

É o seu ritmo, o seu som

Você é apenas som agora

Qual é o batuque que em ti ressoa?

Ele tem forma? Ele tem cor?

Só assim você poderá transformar essa dor

Ir além de denunciá-la como de todo ruim

Que de súbito te invadiu e tomou conta

E assim poder

Romper a imagem de vítima que você carrega

E viver a possibilidade

De assumir

O fim dessa “solução de compromisso”

De desfazer essa briga

Desatar o nó

Gozar de um modo novo

E, finalmente, encontrar-se

Pleno.

.

.

ATRAVÉS DA BOLA

(Jozi Esmeralda)

.

Nas mãos...

Um cristal

Agito, mexo e remexo

Em busca de valores e princípios

Ali aprisionados

.

Mas,

Somente imagens

Soltas

Suspensas numa miniatura de planeta

O teu!

.

Há ausência de vazio

Superado pela natureza do amor

E do sexo

.

Da transa louca entre o desejo e a magia

Da paixão incandescente

Translação e rotação dos corpos

Metafisica de Vênus

.

Mulher, Deusa ou Astro?

Ali está ela

Despida em teu leito

Devora a estagnação moral

Enraizada em teu deleite

.

Dissolve preconceitos

Velhos tabus

E lança o no mundo Azul

das fantasias mais fantásticas

.

Mudanças!

Sim, mudanças...

Você não as sente?

Sua identidade!

Quem é você neste presente?

.

Superações de um passado

.

Quantas águas!

Não é possível ver mais nada

Viro, desviro

De um lado a outro

Apenas águas!

.

.

(Ivan Carlos Regina)

.

Antes, chamávamos amor ao nosso sentimento

E existiam flores tanto no carinho quanto no sexo.

Após, tudo se tornou cinzento, e tão complexo,

Que Deus nos expulsou do firmamento.

Além do espírito soprado,

Ganhamos um corpo na descida,

Uma alma para olharmos nesta vida

E zelar por eles na idade do pecado.

Eu e você – e a solidão a dois -

Este é o destino sob o sol do mundo

Até que o tempo termine, e o que vier depois.

Somos homens, e a rejeição do paraíso

Carregamos sempre no profundo

Mar de nossas vidas impreciso.

Exibições: 65

Comentar

Você precisa ser um membro de Projeto Escrevivendo para adicionar comentários!

Entrar em Projeto Escrevivendo

© 2024   Criado por Karen Kipnis.   Ativado por

Relatar um incidente  |  Termos de serviço