Tal
André Al Braga
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TAL. Instado sem cessar a definir o objeto amado, e sofrendo com as incertezas dessa definição, o sujeito amoroso sonha com uma sabedoria que lhe faria apreender o outro tal como é, exonerado de todo adjetivo.
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I
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Um léxico oco
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Parece que tenho a palavra
na boca
Digo, digo, digo
mas não consigo dizer a tal palavra certa
(nem sei se há palavras certas)
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Algo assim
tal como você é
Desse jeito assim
(Não sei...)
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II
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Os adjetivos estão gastos
Escritores perdem tempo repetindo-os
na tentativa de reescrevê-los
Inútil
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III
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Quero
Tê-la assim
Assim agora
Agora assim como você é
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Se não há palavras para descrevê-la
é porque transcendeu a idéia de beleza
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Talvez esse tal tempo que passa
um dia escreva uma só tal palavra
que seja assim
tal como você é
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Retiro
Raquel Thomé
IDENTIFICAÇÃO. O sujeito se identifica dolorosamente com qualquer pessoa (ou com qualquer personagem) que ocupe, na estrutura amorosa, a mesma posição que ele.
Noite fria. Na mesa de centro um copo com água. Ao lado, a caixa de lenços e uma cartela de comprimidos. Dora, mergulhada no sofá, observava os objetos que caracterizavam o momento que vivia. Olhos vermelhos e inchados entregavam toda a frustração e tristeza da noite anterior.
Em busca de sensações melhores, mas sem se deslocar do sofá, fechou os olhos. Abrindo os braços, realizou o desejo de deitar e ver a revoada dos pássaros, como se estivesse em um camarote. Relaxou. Distraída, bateu na xícara de café empurrando a caixa de lenços. Teve que abrir os olhos. Com tudo que viu, obteve uma nova razão para voltar a chorar.
Passou horas, afundada no sofá, sem notar o tempo que havia passado. A campainha tocou:
- Quem é? – gritou, em tom de desprezo.
- Eu!
- A porta está aberta.
Era Clara, com duas sacolas cheias de compras, voltando do armazém.
- Eu trouxe comida.
- Clara, não sinto fome.
- Você deveria tentar comer.
- O meu estômago está lotado de nós, que se transformam em lágrimas. Isso se tornou um círculo vicioso, não sentirei fome tão cedo.
-Comprei uma colher de pau, notei que está precisando.
A amiga nem se movia e Clara continuava:
- Quando o Luís me deixou, encontrei na culinária um conforto. Vou deixá-la aqui – colocando a colher na mesa, ao lado da caixa de lenços- assim, vão se familiarizando e você pensa na idéia de usá-la. Saindo enfim, desse sofá.
Dora resmungou poucas palavras, e voltou a dormir.
No fim da tarde, com a luz do sol já sumindo da janela, ela acordou. Tateou o que havia na mesa, pegou a colher de pau e olhou-a fixamente:
- Agora, somos nós duas. – desabafou a madrugada inteira, segurando e olhando a colher. – Quer saber? No fundo, eu sinto inveja do João. Quem queria ir embora, era eu. Por que ele tomou coragem? Agora, fiquei encalhada como as minhas amigas. Ele dizia isso delas, não é um absurdo? Dizia também, que para ele, amor é igual uma piscina de marshmallow. – fez uma pausa – Talvez eu não seja tão doce.
Com essa conclusão, calou-se. Largou a colher, cobriu a cabeça e adormeceu.
- Bom dia! – era Clara, com um sorriso enorme.
- Você não desiste.
- Como foram as horas sozinhas com sua colher nova?
- Foram terapêuticas.
- Ótimo, e o que você tem a dizer?
- Que cheguei a uma grande conclusão!
- Qual?
Dora fechou os olhos, cobriu o rosto:
- Que para mim, amor é igual travesseiro.
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LANGOR
Ethel
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LANGOR. Estado sutil do desejo amoroso, experimentado na falta deste, sem nenhum querer-possuir.
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1. ELA:
Me veem frágil,
dolorida e langorosa.
Em mim
Só felicidade,
embora a dor.
Fotos das núpcias,
testemunham o final feliz:
superamos todos os
Contos de Fadas,
imagens congeladas
na eternidade.
Deste Imenso Amor
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E desejar
Ao meu amado,
Após a separação,
Após a superação de sua dor,
Ao encontro de
Um novo amor
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2.ELE:
Não a esquecerei.
Não blasfemo,
a perda atroz.
Nosso amor é perpetuo.
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Endosso a sua morte.
Quero-a liberta das
torturas dantescas
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Com a brisa do tempo,
E a dor das cicatrizes,
Flashes de fragmentos
de uma convivência
ensolarada.
.........
Provocamos a inveja dos deuses ?
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CONTATOS
Maria Inês Zocchio
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CONTATOS. A figura se refere a todo discurso interior suscitado por um contato furtivo com o corpo (e mais precisamente a pele) do ser desejado.
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Como sempre, nos últimos tempos, sua mesa apresentava-se abarrotada de pastas que, empilhadas, serviam como trincheira para ver o inimigo sem ser , obviamente, vista por ele.
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Inimigo? Claro que não...Por ele suspirava já fazia algum tempo...divagava também...atrasava o trabalho...colecionava poemas...
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Esse comportamento inusitado começou a se manifestar depois que o pessoal do escritório decidiu que cada um contribuiria com uma pequena quantia para a compra dos salgadinhos e refrigerantes e um pouco antes do final do expediente anunciariam a comemoração do aniversário do colega.
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E a decoração? Haveria? Claro! Que coisa mais sem graça não haver nenhuma. E a ela coube essa tarefa. Balões nas cores de seu time...só isso lhe ocorrera...E assim fez.
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Hora aprazada e a comemoração acontece pegando de surpresa o aniversariante que estava regressando de um trabalho na rua. Cumprimentos, abraços e beijos. Todo mundo feliz!
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Quem teve a idéia da decoração?- quis saber. Timidamente ela se identifica...Ele dirige-se até ela e efusivamente a agradece com um carinhoso abraço para em seguida, segurando-a pelos braços, beijar-lhe a face.
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Um sorriso nervoso ilumina-lhe o rosto que tende a enrubescer. Meio a contragosto afasta-se dizendo, um pouco ofegante, que, imagine, não há o que agradecer! E a pretexto de ir procurar pelos guardanapos afasta-se antes que seu traiçoeiro coração apronte alguma.
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Nessa noite não conseguiu conciliar o sono...Acariciava os próprios braços... levava a mão ao rosto...suspirava e ansiava por uma nova oportunidade de sentir de novo esse gostoso contato.
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Entre abraços
Eliana Santos
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ABRAÇO. O gesto do abraço amoroso parece realizar, por um instante, para o sujeito, o sonho de união total com o ser amado.
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Nos seus braços desnudos, apenas um silêncio. Um abrigo incontido em noites claras.
Nesse abraço um som grave que rompe todos os meus anseios e mansamente apazigua todas as dores num momento em que desnudo-me daquilo que EU não SOU.
É mais que um abrigo: é um refúgio e prossigo desnundando-me das lágrimas presas nas pálpebras, prossigo desnundando-me dos gritos emudecidos e dos medos contidos.
Nos seus braços me encontro mais em paz, mais eu mesma.
Desvencilho-me do que afora de mim insiste.
Enebrio-me do Universo que se apossa de nossos corpos, um Universo, tão particular, tão peculiar, expresso no entrelaçar da nossa pele. Nos pertencemos então.
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Amanhece...
Em tons escuros a manhã se faz.
Só.
Silêncio.
E esse silêncio ecoa seco no peito.
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Waitting for
Ingrid Morandian
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ESPERA. Tumulto de angústia suscitado pela espera do ser amado, ao sabor dos mais ínfimos atrasos (encontros, telefonemas, cartas, retornos).
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Estou em frente ao Center 3, do outro lado da avenida. Sexta-feira chuvosa. Começa a anoitecer. O maço está no fim. A angústia traça um descompasso interior, como se a música transitasse distante, mas permanente.
Percorri o Conjunto Nacional por diversas vezes e enamorei alguns livros expostos nas estantes da livraria. Pela vitrine vejo o meu reflexo, a barba por fazer.
Ao caminhar pela avenida, a chuva fere o rosto. Minhas vistas confundem-se com o emaranhado de luzes amarelas e pessoas. Meus olhos marejados. Repasso na memória um dos telefonemas:
- O último final de semana foi tão divertido, não foi?
- Sim.
- Você volta?
- Claro que sim.
As horas avançam. A espera entrecortada entre um cigarro e outro. No corpo, o turbilhão de dores e cores adensa no momento. Outro cigarro. A chuva ameniza. Um senhor carrancudo esbarra com força em meu ombro. Ele volta-se, no olhar uma sombra cinzenta. Sombra do desespero.
Não quero retornar ao apartamento. Os cantos do apartamento estão vazios. A ausência se reflete no gesto não acabado, não ajustado.
Sem opção, regresso. Acendo mais um cigarro. Entro na Haddock Lobo. O tempo desdobra-se em garoa fina. O celular afunda no bolso do casaco. Atravesso o portão do prédio. Ele parado na portaria, os cabelos molhados, e no olhar uma longa espera pela noite.
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Carta de amor
Benê Dito Deita
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CARTA. A figura visa a dialética particular da carta de amor, ao mesmo tempo vazia (codificada) e expressiva (carregada da vontade de significar o desejo).
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A água de rosas ganhava um odor ácido no ar. Quem entrasse poderia ter acessos de vômito. Uísque, vinho, sêmen e outros tantos se misturavam pelo quarto.
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Sobre a cama de dossel entalhado, e entornada por um tule vermelho, debruça a mulher. Remexe uma caixa à procura de mais uma lembrança. A cada noite como aquela, movimentada, tinha que se livrar de outra. Era um ritual.
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“Foram tantos esta noite. Estou arriada. Até quantos agüentaremos”. Falou olhando entre as pernas. “E a cada noite tenho que aceitar: nada mudará”.
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Interrompe a fala solitária. Abre a carta e lê como se escutasse quem a escreveu.
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Cara princesa de meus futuros dias,
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Nessas mal traçadas linhas desta (per )missiva declaro intenções
que superem tão risível exposição. Exposição tão já marcada por seus fac-símiles:
modelos à beira do desgaste do lugar-comum. Perfumadas entre volteios de barrocas ou neoclássicas letras, onde “ós” e “ésses” não conseguem finalizar seus contornos.
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Espero que, entre os pássaros de timbres maviosos que escutas enquanto
les esta carta de tamanha pureza, lembra-te sempre daquele mais recluso mas,
quando bem atiçado, entrega-se a saliências ( já o provocara como bem recordas,
ou não? ). E ao qual inspira atos de liberdade, por um doce espocar de estrelas, luzes de nossas vindouras noites.
Noites marcadas por presentes que só o nosso futuro pretende rememorar. Lembras quando pulamos a cerca sobre o jardim do agente funerário da cidade?
Lugar em que te fiz uma grinalda de margaridas, roubadas ali.
Ato tresloucado e apaixonado.
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Mergulhei por mares nunca dantes navegados
enquanto deslizava por teus cabelos vastíssimos.
Vastidão a mais recatada, por onde ainda ninguém se aventurara.
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Empunhado das mais contundentes e tesas intenções
desferi golpes contra o monstro que te fustigavas com seu fogo interminável. Recebias-me, desde então, com uma única flor,
bem cuidada e bem regada por teus sonhos. A cada noite. Única a cada dia.
Em subidas por árvores: trepadeiras frágeis ou vigorosos carvalhos.
Nos esconderijos sob escadas, ou aos olhos da Lua.
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Reacenda estas lembranças e esta carta será única. Só minha e tua.
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Espero retorno tão evocativo de minha pessoa quanto demonstrei sobre ti
e de outros momentos futuros e saudosos, inspirações tão imaculadas
para aqueles que ainda nos esperam em destino tão longevo e próspero.
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Flamejante Cavalheiro.
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“Mais uma que vai virar cinzas na lareira quente de madame Cousette”. Rasga-a toda e a deposita picada, sobre um pote no criado-mudo. “Amanhã comprarei roupas e cintas-liga novinhas. Justinhas. Na medida certa. De lasseadas já basta nós duas, não é querida?”. Gargalha e bate a mão entre as pernas. E ali termina a noite, acariciando o que realmente foi seu destino. Pouco próspero e, com certeza, sem longevidade para o futuro.
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Anulação
Mônica de Medeiros Messias
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ANULAÇÃO. Onda de linguagem no curso da qual o sujeito acaba por anular o objeto amado sob o volume do próprio amor: por uma perversão propriamente amorosa, é o amor que o sujeito ama, não o objeto.
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Ele lhe deu tantas rosas e tanto trabalho...
Rasgava roupa, jogou prato no chão...
Bebia muito, mas trazia o pão... O que mais ela queria?
Ela o abandonou... Pra ele ficou um vazio... no tanque, no quintal, no fogão...
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…..MIOSÓTIS
Bruna Nehring
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CORPO. Todo pensamento, toda comoção, todo interesse suscitados no sujeito amoroso pelo corpo amado.
Na penumbra do bar, só a chama da vela. Palavras ao vento, átonas. Um leve deslizar de seus dedos debaixo dos meus e os meus começando a cobrir os dela. A surpresa do contato hermético do dorso de suas mãos na palma das minhas, a súbita irrefreável necessidade de uma aderência total, de peles e pelos, de contornos e rugas. E de cheiros. Algo tão forte que não pode ser negligenciado, nem perdido, nem adiado.
No semitom de sua voz, um curto bemol, meu nome “Tom”.
Seu aroma tem encharcado meus dias, por meses. Ana, meu braço direito, minha interprete, meu apoio seguro na lida com jovens estagiários cujas ansiedades profissionais puseram frequentemente em xeque meu equilíbrio didático.
Agora minha missão acabou. Volto para casa. A poltrona do avião, o cinto de segurança, meu próximo destino: o frio de Chicago.
Quero esquecer tudo mas não posso. Foi forte demais, definitivo demais. E tarde demais.
Hoje de manhã a despedida. O vapor do chuveiro a envolver-nos, a exalar de novo o perfume que já era a própria Ana, e que agora já tinha sabor.
“O que é?”
E sua voz abafada no escorrer do meu peito: “Wind”
A sacola do freeshop me queima as mãos: a miniatura vermelha da Ferrari para Rick, a bonequinha em traje típico para Lilly. Mas a caixa dourada do Wind foi um erro.
Ter comprado o perfume para Jenifer foi um erro. Sinto-me aviltado, desprezível, envergonhado... O que faço com isso...
Sempre amei Jenifer, sua flexibilidade de atleta, seus orgasmos sussurrados para que não passassem das paredes, sua tranquilidade, seu rastro de alfazema que incorpora o cheiro dos mil abraços dos meus filhos, das gavetas arrumadas, dos lençóis frescos de estampas campestres. E seu “Tom” com um O infinito em dois tons, como se me chamasse sempre de longe... Sou um estupido, um covarde...Não posso levar o Wind para ela... O que faço com isso...
Vou largá-lo no avião, esquecido de propósito. Ou talvez o dê à aeromoça que me serve o drinque. Mostro-lhe o papelzinho enrolado que Ana deslizou no bolso de minha camisa no último abraço.
“Conhece esta palavra? Morei aqui só poucos meses...”
Um sorriso quase maroto, mas a voz inalterada:
“Miosótis? é um florzinha azul, pequenina e sem cheiro, vocês a chamam “forget-me-not”.
Foi como sorver minha última esperança de esquecer.
Aqui, agora, perdido entre duas ausências.
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Dedicatória
Claire Feliz Regina
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DEDICATÓRIA. Episódio de linguagem que acompanha todo presente amoroso, real ou projetado, e, mais geralmente, todo gesto, efetivo ou interior, pelo qual o sujeito dedica alguma coisa ao ser amado.
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Para a minha amiga muito especial,
não porque esteve comigo nas minhas horas
de tristeza, isso todas fizeram,
mas porque sempre se alegrou com as minhas alegrias.
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Declaração
Miguel Filho
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DECLARAÇÃO. Propensão do sujeito amoroso de conversar abundantemente, com uma emoção contida, com o ser amado, sobre seu amor, sobre ele, sobre si mesmo, sobre eles: a declaração não se reporta à confissão de amor, mas à forma, infinitamente comentada, da relação amorosa.
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Este inferno de amar!
Um amor que se corrói, tanto dói...
como se livrar? fico à pensar.
Sei lá, tudo vai passar.
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Efeitos Colaterais
David Andrade
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ENTENDER. Percebendo repentinamente o episódio amoroso como um nó de razões inexplicáveis e de soluções bloqueadas, o sujeito exclama: “Quero entender (o que está acontecendo comigo)!”
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Bum...Bum...Bum...
Que som é este que não reconheço, vindo dentro de mim?
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Fuuuuuuu
A brisa parece mais carinhosa que o habitual...
E, com certeza, anda de conchavos com as flores,
pois tem levado seus aromas para passear...
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Crash!
E as cores fortes que vem de encontro aos meus olhos?
Como nunca as notei a caminho do trabalho?
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Por que a vendedora de cocada na esquina,
normalmente tão mal-humorada,
resolveu, finalmente, me dar bom dia?
E que diabos estou fazendo, cumprimentando todos
(os) passantes desconhecidos - já tão familiares,?
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Opa!
Olha pra mim, no elevador...
cantarolando música antiga do Roberto Carlos...
E esse meu sorriso é novo?
Esse brilho nos olhos eu não conhecia!
Que cara mais boba...
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O-que-está-acontecendo-comigooooo?
Queria entender...
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Atopos
María Cecilia Fernández Uhart
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ATOPOS. O ser amado é reconhecido pelo sujeito amoroso como “atopos” (qualificação dada a Sócrates por seus interlocutores), quer dizer, inclassificável, de uma originalidade sempre imprevista.
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Ouvi no rádio sobre um homem
dizia ter se casado três vezes com a mesma mulher
que broxante, pensei
ele explicou
a mesma mas diferente
explicou a maravilha de se separar da mulher antiga e se casar com a mesma,
só que diferente
que isso era possível de muitas formas
Mudando de casa, trocando o guarda-roupa, encontrando novos interesses
que tudo isso acontecia em um divórcio
só que era mais caro, mais trabalhoso
e em menos de dois anos
tempo estimado para as surpresas e paixão se esgotarem
tudo estaria monotonamente no mesmo lugar
Estático
.
Singularidade do amor
descobrir a cada dia algo novo
inesperado
As surpresas são agentes catalizadores do descobrimento
no imprevisto surgem faces ocultas
pedaços adormecidos, perdidos do eu
Ao me surpreender, vc me surpreende duplamente
com a surpresa que planejou
e com a outra, que sou eu em meu surpreendimento
Quem quer estar definitivamente concluído ?
Quem é totalmente feliz com o que é ?
Quem não quer encontrar a possibilidade de ser algo novo,
diferente
estranhamente renovado em si mesmo
livre
Para junto ao ser amado, se redesenhar, se refazer por completo
se desfazendo de um eu antes limitado
experimentar
o incalculável, o inclassificável
o atopos
A surpresa em si não é nada
a reação a ela, é a oportunidade única
de expandir muitos eus
Inexplicáveis
Infinitos
Multiplicando as formas de amar
desde a origem
se entregar
.
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Roupa
Heitor Feitosa
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ROUPA. Todo afeto suscitado ou alimentado pela roupa que o sujeito vestia no momento do encontro amoroso, ou que veste na intenção de seduzir o objeto amado.
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Você veio vestida de verdade
Vociferando sua voz vibrante
E com um sorriso de sagacidade
Pronunciou seu discurso arrogante
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Você veio vestida em vermelho
Um vermelho demais cintilante
E olhando de frente ao espelho
Vi vermelho meu olhar lacrimejante
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E partiu vestida de orgulho
Sem sequer olhar para trás
Desapareceu na dureza dos passos
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E eu que vesti-me de Sol
Quando aqui habitavas
Agora fujo do frio vestido em farrapos
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LEMBRANÇA
Mayara Aranha
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LEMBRANÇA. Rememoração feliz e/ou lancinante de um objeto, de um gesto, de uma cena, ligados ao ser amado, e marcada pela intromissão do imperfeito na gramática do discurso amoroso.
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Após infindos dias aguardando por aquele sete de novembro, enfim encontravam-se. Belo e romântico cenário, a noturna plataforma da estação da Sé de um sábado quente de primavera.
Na pilastra cor-de-nada de grandioso diâmetro, a menina recostava-se. Sentia-se quente. Como a rosa que um dia sonhou em ganhar, seu rubor fazia contraponto ao verde-água de sua blusa de alcinhas. O pé direito esticado para trás apoiava-se na alta coluna: era a mais graciosa e fracassada tentativa de esconder aquele momento. Seu estado de “sem gracice” manifestava-se sob os grandes e belos olhos castanhos do rapaz, os malditos causadores de todo o “entortamento” daquele corpo feminino, daquele desequilíbrio e daquela tontura que ela sentia. Tudo rodava de tanto amor.
Foi então que aquele olhar sorridente e interessado de olhos míopes e daltônicos, desconfiados, que não perdem um detalhe sequer, e aqueles dentes brilhantes, de um branco quase maléfico, perguntaram à menina:
- Posso te dar um beijo?
Pausa. Ela só queria respirar para a resposta.
- Pode.
Um trem passou na linha vermelha, fazendo voar os vestidos das moças que andavam apressadas, sacudindo todas as sacolas, todos os papéis, emaranhando todos os cabelos. Fez aqueles dois levitarem invisíveis no meio da multidão.
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© 2024 Criado por Karen Kipnis. Ativado por
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