Buenos Aires, num dia qualquer, 1935.
Se eu pudesse descrever a sensação que sinto quando penso em Carlos, mas nenhuma palavra dizível é capaz de elucidar o que acontece com o meu corpo, nem tampouco revelar o que passa na minha alma quando estou perto dele. Hoje vou encontrá-lo na Recoleta, marcamos um jantar no meu restaurante predileto. Estou ansiosa, pois sei bem que irei me perder naqueles olhos amendoados e enegrecidos que me olham de esgueira e de forma tão poética me deixam totalmente nua. Fico hipnotizada o tempo todo quando estou com Carlos. Também, pudera, ele sabe como ninguém pronunciar musicalmente elogios sobre a minha beleza e acariciar os meus ouvidos com doces palavras que me fazem entrar num plano mágico de paixão. Aliás, nunca estive tão apaixonada por um homem. Por isso estou há mais de uma hora me arrumando para encontrá-lo; coloquei o vestido preto esvoaçante, xale vermelho sobre os ombros; fiz uma maquiagem de noite, batom vermelho, é claro. Prendi a metade do cabelo e usei um scarpin clássico preto, alto, bem alto. Argolas douradas e muitas pulseiras. Perfume doce, gerânio e patchouli, irresistível. Ai, como amo Carlos! Quero estar perfeita para ele.
Quando chego perto do lugar combinado, já sinto o meu coração pulsar desenfreadamente, como num tango à meia noite, parecendo que tudo vai acabar. Imagino por alguns segundos que é a última vez que o vejo, que é o último beijo que lhe dou e que é a última vez que toco sua pele macia; esta pele que faz percorrer em meu corpo arrepios libidinosos de desejo. Reconheço que é tudo ilusão de uma mulher com medo de perder o seu amado, pois sei bem que ele também me ama e que vamos ficar juntos para sempre. Entro no restaurante, ele já está lá, numa mesa ao canto do salão, lindo como sempre, elegante como todas as vezes que nos vimos. Uma garrafa de rum sobre a mesa, o copo vazio. Aproximo-me e vejo que não está bem. Fico compadecida e quero saber o que aconteceu com o meu Amor. Carlos está arrasado, conta-me que não podemos mais passar uma semana na romântica Paris e nem colocar em prática ser plano de me dar um anel de brilhantes no alto da torre Eiffel. Fala-me, com os olhos mareados, que perdeu toda a sua fortuna em uma cabeça de cavalo. O nobre potro era o melhor de todos, deixou-o empolgado e o fez apostar tudo naquela disputa. Agora estava na miséria, não tinha nem para pagar a conta do restaurante. Mas nem tudo estava perdido. Sua esperança era que Alfredo, seu amigo e parceiro, quisesse gravar um disco inédito de tango, com a fortuna imensurável que havia ganhado por apostar nas patas da baia. Poderiam continuar empenhados na carreira de músicos, que estava indo tão bem. Fiquei desolada com a notícia, não podia acreditar que ele pudesse ser tão infantil e viciado. Abri minha bolsa, peguei os pesos que tinha, joguei em cima da mesa e sai sem olhar para traz. Uma cólera enraivecida espalhou-se pelo meu sangue, sai do restaurante para não matar o viciado. Escutei ainda ele berrar meu nome, chorando e em desespero, pedia para eu não abandoná-lo. Não bastava o que havia me feito? Ainda me enchia de vergonha em plena Recoleta. Caminhei algumas quadras para me acalmar e senti o meu corpo relaxar pouco a pouco. Então lembrei que precisava ligar para o Alfredo.
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