Alegria, alegria
Eu caminhava pelos corredores da Escola Técnica Federal de Pelotas em direção à área de ciências humanas, para assistir a mais uma aula do professor de história. Tito era uma verdadeira lenda entre os alunos e eu, naquele dia, não poderia imaginar que presenciaria uma das apresentações mais contundentes e marcantes da minha vida. Era 1992, o governo Collor sofria graves acusações de irregularidades que sugeriam inadmissíveis esquemas de corrupção. Falavam da falta de idoneidade de um tal de PC Farias, denunciavam escândalos políticos que envolviam a primeira-dama, e o próprio presidente, Fernando Collor de Mello, era acusado de crimes contra o poder público. Cheguei à sala de aula descompromissada com a onda de moralização que insuflava os ânimos do povo brasileiro. Estava muito preocupada se a minha calça jeans desbotada combinava com a blusa justa, e estas com a arquitetura anatômica do meu corpo. No entanto, para não deixar transparecer meu descaso com a política do País, sentei na primeira fila de cadeiras, mais próxima a mesa do professor, demonstrando interesse e atenção em sua explanação. Ele, - um sujeito de meia idade, que usava gel no cabelo, óculos que cobria todo o terço médio da face e com aquela camisa xadrez de sempre-, entrou altivo e determinado a mudar o rumo da história. Os caras-pintadas começavam a ferver pelas ruas das maiores cidades, em demonstrações inimagináveis de patriotismo.
O professor iniciou a aula falando da época da ditadura militar, do AI-5 e de como a resistência jovem daqueles dias articulava atos de rebeldia contra o governo dos anos 60. Enaltecia a meticulosa organização dos subversivos, sua inexorável consciência politica e o espírito de coletividade que sem sombra de dúvidas foi determinante para o fim daquele nefasto período.
Tito, em seu animado discurso, mencionava inúmeros exemplos que demonstravam como foi memoravelmente estruturada a oposição daqueles dias. Citava as músicas proibidas de Gil, Caetano e Chico Buarque. Contava dos sequestros de personalidades, para servir como troca por presos políticos e se referia as marchas de protestos dos estudantes. Sua empolgação chegou a tal ponto que seu corpo tremia, a pele do rosto tornou-se vermelha, enquanto ele apontava o dedo para a plateia, questionando-nos sobre o tipo de jovem que erámos. Acusava-nos de alienados políticos, enquanto sua franja, tão bem alinhada outrora, agora deslizava para a testa, juntamente com os óculos em seu nariz ancudo. A cada solavanco que ele dava com o corpo quando batia na mesa, indignado com a nossa passividade, eu levava um susto e acordava minha consciência política. A mesa estremecia e os nossos corações inflavam de coragem e patriotismo. Sentia uma vontade louca de também ser uma subversiva e não me afogar na lama negra que submergia Brasília. Estava evidente para qualquer um, naquela sala, que possuíamos um papel inquestionável na história do Brasil. O professor Tito havia, com seu discurso veemente, fomentado aquele espírito de guerrilha. Estávamos totalmente alvoroçados e prontos para a batalha. No entanto, não percebendo que seu papel havia sido cumprido, ele permaneceu acusando-nos de inércia e deferindo golpes contra a mesa com violência. Repetia insistentemente que os jovens de hoje eram muito diferentes daqueles da época da ditadura militar. Que estávamos apenas preocupados em ler o horóscopo no jornal e usar as roupas da efêmera moda. E, finalmente, em um golpe certeiro, alguns minutos antes de tocar o sinal indicando o término da aula, o móvel, já desestruturado diante de tantas pancadas, desmantelou-se na nossa frente, provocando um estrondo que paralisou todos os presentes, inclusive o professor.
Um silêncio de tumba reinou naquele momento. Tito, vendo o estrago, proferiu:
- Já não se fazem mesas como antigamente.
Por sorte divina, o sinal tocou e saímos da aula para nos juntar com os demais caras-pintadas, na frente da Escola. Foi uma manifestação estarrecedora, que apareceu na TV local e tudo. E foi assim que me interessei pelas canções do Caetano Veloso, sobretudo Alegria, alegria. Hoje quando escuto esta música, tenho certeza de que os jovens de hoje não são mais como éramos na minha época.
Graziela Brum
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Parabéns. Ótimo texto. Boa estréia.
Parabéns! É mesmo muito bom. Você escreve bem e é uma artista nata.Beijos
Graziela, aplausos, aplausos! nunca esquecerei sua "entrée" na turma: sua leitura foi deliciosamente sonora alegre e compartilhada. INDELÉVEL!!!
Que chique, olha meu texto aí gente!
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