O QUE É QUE A VIDA VAI FAZER DE MIM?
Numa tristeza sem luar, diante de cada verso dessa vida, debruço o meu corpo inteiro na janela. Deixo a chuva cair no rosto e escorrer unida às emoções. Uma cachoeira de águas profusas por todo o meu corpo, feita dos meus risos e mágoas, dos meus gozos e paixões, desamores e saudades, medos e mistérios. Também daquilo que dói já por muito tempo e eu nunca sei como que chamar. Mas dói. Tortura. Vira tempestade que eu enfrento ao engolir a noite que não tem mais fim. Deixo lavar as feridas, escoar o sangue enquanto espero outro verso um dia pulsar.
Só que a tal espera desenha uma assombrada agonia diante da morte em vida. Ajoelho, invento promessas e rezas. Acendo velas, canto, danço, evoco todos os santos. Lanço magias para os deuses da madrugada que misteriosamente me acolhem com aquele já conhecido canto de ninar. Aquela música que jamais posso ouvir sem sentir a alma banhada de amor pela acalorada voz materna. E em sonoro timbre soprano, no meio da escuridão, ela canta assim:
"Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país
Não, não fuja não..."
Mas não estou fugindo não, deuses meus! Quero mais é beber toda essa tempestade com vodka e gelo. Embriagar-me com os alemães e seus canhões. Chorar até desaguar. Toda nua correr e lutar entre relâmpagos e trovões. Saciar-me, matar a sede, matar as saudades, matar todos os meus medos. Assassiná-los.
"Vem, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido."
Minhas mãos aos céus, sob os pés uma luz de consolo. Meu corpo, defendido por um escudo de estrelas, flutua pela imensidão. Onde o tempo viaja, onde o desespero mergulha num irresistível retrocesso. Eu ali encolhida, acolhida pelo abraço agasalhado do útero materno, pela pureza e inocência de um dia que existiu antes da vida chegar a suceder.
Eu quase em paz, porém louca. Ainda debruçada na janela escura com os olhos arregalados, encharcada de chuvas tempestivas, cantando com o Chico, com a minha mãe, com todos os santos e deuses, com João e Maria, todos juntos formando um imenso coro dentro da minha ensurdecedora memória.
Desvairada! Inconscientemente envolvida pelos primeiros sopros dessa encarnação, eu canto com espanto. Danço nas esquinas das minhas cicatrizes, cuspo nas feridas e grito em silêncio para quem puder ouvir.
Socorro! O que é que a vida vai fazer de mim?
Por Flávia Soufer
.................
Exibições: 53
Tags: canções, escrevivendo, escrita, leitura, oficina
Bem-vindo a
Projeto Escrevivendo
© 2024 Criado por Karen Kipnis. Ativado por
Você precisa ser um membro de Projeto Escrevivendo para adicionar comentários!
Entrar em Projeto Escrevivendo