Queridos escreviventes,
Como anunciado por aqui, começamos no último sábado o novo módulo do escrevivendo, dedicado à poesia, lá na Casa das Rosas. Entre os escreviventes veteranos e os novatos, a novidade parece ter sido mesmo a temática deste módulo. Por isso, começamos este encontro definindo o objetivo do curso: descobrir uma poética, uma voz - individual e coletiva - que possibilite pensarmos a nossa escrita, a linguagem e a poesia.
Sugeri que poesia, para nós, no curso, começaria com uma simples delimitação: uma forma de olhar. Livre das formas, das normas, das convenções. Trabalharemos com leituras de poemas, pensando tradições e rupturas, mas o que interessa é podermos experimentar e exercitar poéticas para, no fim deste percurso, podermos delimitar uma visão, íntima e crítica (não, isto não é um paradoxo!) sobre o que é a poesia.
No encontro, pudemos ler três poemas, como uma primeira provocação. Poemas que apresentam alguns conceitos importantes nesta definição (nunca acabada) da poesia, mas que também brincam com a forma e com a tradição para apresentar significados e questionar o nosso lugar de leitor. O primeiro deles, "Primeira Lição", de Ana Cristina Cesar.
PRIMEIRA LIÇÃO
(Ana Cristina Cesar)
Os gêneros de poesia são: lírico, satírico, didático, épico,
ligeiro.
O gênero lírico compreende o lirismo.
Lirismo é a tradução de um sentimento subjetivo, sincero e
pessoal.
É a linguagem do coração, do amor.
O lirismo é assim denominado porque em outros tempos os
versos sentimentais eram declamados ao som da lira.
O lirismo pode ser:
a) Elegíaco, quando trata de assuntos tristes, quase sempre a
morte.
b) Bucólico, quando versa sobre assuntos campestres.
c) Erótico, quando versa sobre o amor.
O lirismo elegíaco compreende a elegia, a nênia, a endecha, o
epitáfio e o epicédio.
Elegia é uma poesia que trata de assuntos tristes.
Nênia é uma poesia em homenagem a uma pessoa morta.
Era declamada junto à fogueira onde o cadáver era incinerado.
Endecha é uma poesia que revela as dores do coração.
Epitáfio é um pequeno verso gravado em pedras tumulares.
Epicédio é uma poesia onde o poeta relata a vida de uma
pessoa morta.
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
Alguns escreviventes estranharam o caráter didático do poema, seguido desta estrofe, pungente, que mostra o testemunho da poeta. O que vocês acham? Como leem o poema? Como podemos pensar, a partir desta contraposição, os conceitos que o poema traz?
Em seguida, lemos a pequena "Lição" de Drummond:
LIÇÃO
(Carlos Drummond de Andrade)
Tarde, a vida me ensina
esta lição discreta:
a ode cristalina
é a que se faz sem poeta.
Para entendermos estes versos, lemos ainda alguns trechos do autor, como por exemplo: "A poesia é incomunicável/ Fique torto no seu canto/ Não ame" (Segredo), ou ainda: "Adeus composição que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade" (Últimos dias), e também: "Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade./ Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia." - poema que ele termina com o verso: "(desconfio que escrevi um poema)" (O Sobrevivente).
E para problematizar um pouquinho mais todas essas idéias, lemos os sonetos de Paulo Henriques Britto, que usa a construção tradicional para tecer uma conversa (um telefonema? um diário? uma série de cartas?) bem moderna, como disseram alguns escreviventes. O final - bem surpreendente - é o que nos interessa, sobretudo:
ATÉ SEGUNDA ORDEM
(Paulo Henriques Britto)
(10 DE OUTUBRO)
Até segunda ordem estão suspensas
todas as autorizações de férias,
viagens, tratamentos e licenças.
É hora de pensar em coisas sérias.
Deve chegar mais um carregamento
até o dia quinze, dezesseis
no máximo. Fui lá em Sacramento,
mas não deu pra encontrar com o tal inglês —
será que alguém errou o codinome?
Confere aí com quem organizou
o negócio todo. Bem, amanhã
a gente se fala, que agora a fome
está apertando. (Ah, o padre adorou
o canivete suíço de Taiwan.)
(9 DE NOVEMBRO)
Tudo resolvido. O campo de pouso
até que é razoável. Mas o tal de
Carlão, hein, vou te contar. É nervoso,
não sei; parece que sofre de mal de
Parkinson, ou coisa que o valha. Mas isso
é o de menos. O pior é que o "Almirante"
desde terça tomou chá de sumiço.
Não sei que fim levou; é preocupante.
Chegou a encomenda de Lisboa.
O número é 318.
A senha: "O olho esquerdo de Camões
não vale uma epopéia". (Essa é boa!)
Não agüento mais ter que jantar biscoito.
No mais, tudo bem. Aguardo instruções.
(21 DE DEZEMBRO)
Sim, recebi a carta do João.
Só que o seu telefonema da sexta
já havia alterado a situação
completamente. É, o Bento é uma besta,
mas você, também... Nessas horas é que se
vê que falta faz um profissional.
Você nunca vai ser como era o Alex.
Mas deixa isso pra lá. O principal
é que o negócio está de pé, ainda.
O que não pode é pôr tudo a perder
a essa altura do campeonato.
Não diga nada, nada, à dona Arminda.
Toma cuidado. Conto com você.
Aguarde o nosso próximo contato.
(12 DE JANEIRO)
Por quê que ninguém me deu um aviso?
Pra que que serve essa porra de bip?
Assim não dá. Que falta de juízo,
de... de... sei lá! Eu lá em Arembipe
dando duro, e vocês aí de pândega!
O deputado, é claro, virou bicho,
e não vai mais ajudar lá na alfândega.
Meses de esforço jogados no lixo!
E agora? E o alvará do "Três Irmãos"?
E os dez mil dólares do Mr. Walloughby?
Não vou nem falar com o doutor Felipe.
Vocês que agüentem o tranco. Eu lavo as mãos.
Se alguém me perguntar, eu tenho um álibi
perfeito: "Eu estava lá em Arembipe".
(19 DE JANEIRO)
Até esta chegar às suas mãos
eu já devo ter cruzado a fronteira.
Entregue por favor aos meus irmãos
os livros da segunda prateleira,
e àquela moça – a dos "quatorze dígitos" –
o embrulho que ficou com o teu amigo.
Eu lavei com cuidado o disco rígido.
Os disquetes back-up estão comigo.
Até mais. Heroísmo não é a minha.
A barra pesou. Desculpe o mau jeito.
Levei tudo que coube na viatura,
mas deixei um revólver na cozinha,
com uma bala. Destrua este soneto
imediatamente após a leitura.
Impossível foi esgotar os significados possíveis que os poemas nos apresentam. E nem é esta a intenção. Até porque, como diria Borges, o livro, quando lido, se modifica a cada instante. Diante desses autores, tão vivos que pudemos ver seus olhinhos perguntantes, nos questionando, ficamos com aquela sensação, iminente, de que precisavamos fazer alguma coisa. É esta coisa que começa a acontecer na oficina: a escrita.
Tivemos ainda uma atividade de apresentação, em que eu pedi para que cada um se apresentasse a partir de um objeto. Falar de si mesmo através de uma coisa, de algo que é externo, e observar o que acontece com a linguagem nesse processo. O resultado dessa experiência será postado aqui depois. Mas sugiro que vocês, que estão lendo este post, se arrisquem, e tentem essa brincadeira.
Para o próximo encontro, que será no dia 22, pedi que cada um escrevesse alguma coisa! a partir de uma sensação. Assim: molhe a mão na água, ouça uma música, coma uma fruta, pisa na terra molhada - e então escreva sobre isso. Vocês, daqui do NING, podem fazer essa proposta também. Este espaço é, sobretudo, de encontro!
um beijo em cada um,
com o prazer, imenso, de ser parte deste processo,
f.
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