Projeto Escrevivendo

Encontros


 Acordou cedo. Dia escuro. Ao acabar de colocar o tênis, procura o relógio e o frequencímetro. Onde estariam? Pensara ter deixado na cômoda. Volta ao banheiro e lá estão: em cima da pia.

 

Coloca os óculos escuros, ajeita o boné. Quando sai, o sol está nascendo. Inspira fundo e sente o cheiro do mar entrando nos seus pulmões. Está em frente à casa do Morro Ipiranga. Olha as amendoeiras. Ouve os irmãos falando, cada um da sua árvore. Está pendurada em um dos galhos, os pés soltos , balançando. “Esta daqui é minha!”, diz. “Veja: vou me pendurar igual a um macaco!”, fala o outro. De longe a voz da mãe: “Menino! Você vai cair!”.Agora as árvores estão enormes, frondosas.

 

Alonga o corpo, sente cada músculo acordando. Zera o cronômetro. Começa o treino em ritmo sonolento. Logo na descida da primeira ladeira vem a imagem do grupo de amigos da adolescência. Parece que foi outra encarnação. Todos de moto. Ia na garupa do André. Sem capacete. Tempos antigos, sem muita vigilância. Um grupo de motos. Os seus pais proibiam aquelas aventuras. De repente, surge o carro do seu pai. Diz ao amigo: “Anda! Meu pai está aí atrás!” Passam na frente dos outros e param na casa do Gugu. Dá tempo para soltar da moto e se aboletar atrás de uma delas , fingindo estar amarrando o sapato. O pai pergunta de dentro do carro pela filha. A resposta é de desconhecimento do seu paradeiro. Quando o carro já está acelerando para sair, a sua irmã fala da janela do carro: “Olha ela ali! Está atrás da moto!”. Não há escapatória. “Estava amarrando o sapato e nem ouvi você falando, meu pai!”.

 

Desce o Morro Ipiranga e segue em um movimento um pouco mais acelerado em direção ao Farol da Barra. Ali realizara a sua primeira corrida. Uma eliminatória da São Silvestre. Uma superação . Jamais pensara que correria 15 km e chegando inteira ao final. Muito boa a sensação. Suada, em um ritmo forte.

 

Chega ao Porto da Barra . Olha em direção ao mar. Lá no horizonte, a ilha onde veraneara tantos anos. O primeiro beijo, na praia, ao lado da “Árvore do amor”. Corpos colados, cheiro do mar, lua minguante, céu estrelado. O barulho das ondas quebrando na praia se misturava com a respiração ofegante de prazer. O ar impregnado da sensualidade que brotava dos corpos colados, dos afagos. Paixão de verão. Encontravam-se todo o dia, o dia inteiro. Andavam de mãos dadas. Muitas vezes em um silêncio íntimo.

 

Segue subindo a Ladeira da Barra. No largo da Vitória está a Igreja onde batizara uma de suas filhas. Linda , carequinha, traços finos. A roupinha de pagão que lhe cobria e sobrava muito, muito além dos pézinhos. Chorara tanto ao ser banhada na pia batismal... Ainda sente o cheiro dos sequilhos quentinhos servidos com refrigerantes, sucos e vinho. Família reunida. Bons tempos de união. Os pais encantados com a primeira netinha.

 

Rua Humberto de Campos. O nenê chegou em casa. A alfazema deixa seu rastro por todo o ambiente. Atmosfera enlevada. Um ser novo passou a habitar seu coração Para sempre. “Minha menina, minhas meninas.” “Foi , meu amor, papai do céu mandou você para mim. Aliás, foi você quem disse a ele que me queria. Ficou na ponta dos pés e me escolheu: 'É aquela ali ,olha!' “

 

De repente, está na Catedral Basílica. Entra na nave . Ouve a música barroca entoada por um grupo de meninos. O incenso a perfumar e a encobrir com sua névoa cinza o ambiente. A missa começa a ser celebrada. Do lado de fora, o som de um berimbau sendo tocado para o grupo que dança a capoeira ritmada. Corpos fortes, morenos , suados.

 

Segue pelos paralelepípedos do pelourinho. Um trajeto cheio de subidas e descidas. Tortuoso. Emblemático. Ainda ecoam na cidade os ruídos daquele tempo. Basta andar ali.

 

Volta pela Praça Municipal. Os pombos. “Mãe, vamos dar milho pros pombos?” As duas pequeninas. “Ai , mãe! Ele tá vindo pra cima de mim!” A corrida gostosa para o aconchego. Os braços, os carinhos tinham que dar para as duas. Os olhinhos espertos sob as franjas.

 

Praça Castro Alves. Apinhada de gente. Encontro dos trios. De repente o silêncio. O hino religioso é tocado e cantado. Todos fazem o sinal da cruz para rezar a música sagrada. A praça do povo para por um instante.

 

Avenida Contorno. Cidade baixa. Festa do Bomfim. Sol a pino. Tapete humano até a igreja. Música de carnaval. Água de cheiro. Pipoca. Ruas coloridas de branco.

 

Volta ao Porto da Barra. Preto e branco. Mergulho no mar. Nada, nada. Se depois não existir? Melhor. Sono esplêndido.

 

Bahia, Baía de todos os Santos, baía- baú de segredos e contos, baía-berço de história e sonhos, baía- mar caudalosa que abarca, abraça, quente, envolvente.

 

Corrida sincronizada. Mar a dentro.

 

São Paulo, 16 de agosto de 2011.

 

 

 

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