Saudade pela Estreiteza
Garoa? Acho que há... mais de trinta anos, quase quarenta. Foi a partir dali que começou a rarear. Enquanto ela subsistia era um cuidado só descer pelos paralelepípedos. Não, não é São Paulo que busco. E sim uma vizinha sua. Onde moro até hoje e onde os paralelepípedos também estão rareando.
Calçadas? Não tinha tanta precisão. O acostamento, a trilhazinha, o mato ralo e replicante funcionavam quando elas não existiam. Além disso, carros e pedestres conviviam tranquilos. Eles se conheciam, e as regras se davam no bom senso das relações. E assim se ia. A estreiteza das ruas não atrapalhava nas horas que sobravam.
Era um momento que convidava para as vendas de pinga e de cereais a granel. Um bom tempo jogado fora com o ganho das risadas e da conversa. Um misto-quente ou um falso bauru, fumegante e com molho de soja - fora de moda ainda - no bar do japonês. Era o Marcelino, de dentes fáceis e atendimento acelerado, que executava essas extravagâncias. Até se matava aula por isso.
Ou, então, para um pedaço de pizza de muzzarela com chop, no bar do seu Chiquinho. Era algo que quem vinha ao centro não podia desprezar, caso tivesse um trocado. Tempo acho que sobrava. Ter conhecidos cobria qualquer atraso, meio coisa de confraria, sabe? E assim se ia. As horas eram largas para se ir ao longe, e, se bobeasse, também para voltar.
Mas isso já passou. Virou lembrança seletiva para encarar essa pressa de hoje. Se no passado a natureza nos deu a garoa de igual e nos impediu a inveja, parece que buscamos imitar a necessidade de correr, igualzinho à nossa vizinha metrópole ( mãe das cidades é seu significado, não seria madrasta, não?), ou a ganhamos por tabela, já que tão próximas.
E, assim, a estreiteza permaneceu, enquanto algumas cabeças continuam a pensar ainda, entre aspas, nas conversas e no tempo largo que não voltam mais. Entre aspas porque a cidade cresceu. Porque a população não é mais aquele grupo que se conhecia por Zé do Bar, João do Cartório, Maria da Esquina, ou outros apelidos. Porque todos querem um carro, nem que seja para quinhentos metros. Porque enquanto as ruas continuaram estreitas, os bolsos querem-se mais largos e cheios do que onde cabe a memória.
Sempre brotam, pelas ruas, lojinhas de curta validade, salgadarias de cinqüenta centavos a unidade, ou um real, se pedir um suco, acompanhados de uma boa azia. Ou, então, camelôs com braços de ventilador, girando e empurrando clientes sarjeta abaixo. E ainda entregadores de papeizinhos – dentistas, óticas, videntes, cursos e o escambal. E tudo isso, muitas vezes, empresas dos saudosistas que “choram” a cidade que não existe mais.
Buzina-se o tempo todo sabendo que o tempo não andará mais rápido por isso. Surgem carros pelo acostamento que não serve mais aos pedestres, que podiam ser desavisados no passado. O risco era mínimo. Hoje não. Surgem mesmo que sobre a calçada. Temos que andar pelas ruas para desviar daqueles que estacionam pelo passeio.
Qual será o nosso destino? Seremos sucursal de nossa “mãe”, pelo menos no que diz respeito ao trânsito? Se for, nossas ruas ainda ficarão mais estreitas. Ou alargaremos nossas mentes antes?
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Tags: escrita, leitura, oficina, roteiro, sentimental
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