Projeto Escrevivendo

Benê Dito Deíta

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Como me meti nessa fria, cara? Num lugar desses? Só pode ser amizade. Pura coisa de amigo. Ah! Com certeza: eu sou um puuuta amigo.

Em plena sexta-feira? Dia de sair com a  blazer?  Até as menininhas pagam o maior pau. Um sessentão, leve e solto ... ah, que bom. Nem dia ruim me segura. Santa pílula azul! E com essa dinheirama toda ainda! Playboyzão abençoado por Deus. Isso que eu sô!

Por isso me pergunto mais ainda. Por que eu? Deve ser um teste. Cê deve tá vendo tudo de camarote, não é?  Até onde vão minhas convicções, não é isso, meu Xará maior? E este cara velho do meu lado, até há pouco um garanhão, mais inveterado do que eu. Ele deve ser seu enviado, um enviadão...  nossa, foi sem querer, escapou. Juro meu Deus. Por tudo que é sagrado. E amizade é o que há de mais sagrado.

Mas o quê  fez ele mudar tanto assim? Maior 171? De arma mais poderosa que a minha? Bom de vida: todo ano carro novo, ilha particular, noitadas  a muito álcool e orgia?

Bem, aqui tô eu. Não tem  mais como fugir. Espero que nenhum conhecido tenha me visto entrar. Opa, será que lá dentro...? Bem... , mas assim um tem o outro na mão. Mas vamô lá, atravessando a porta bem atrás do Bernardo.

Aparentemente não difere muito das  que eu já fui. Tudo muito branco, úmido. Partes do corpo..., ainda bem que não se vê tudo. Tem  neblina e  toalhas escondendo. Muito calor e suor. Tirando  os frequentadores é tudo igual. O cheiro? Opa..., parece diferente. Não é de Eucalipto. Flores?  Nem sei dizer quais. Ainda bem. Deus me livre!

Ai, sentar? Dá medo. Ah o Bernardo. Tô vendo ele. Mostrou onde eu posso sentar. Confio de olho fechado. Aquilo sim: era amigo. Tantas vezes: dinheiro, apoio nas horas difíceis. É, não tem como não apoiá-lo nessa hora. Primeira vez.

Estou irrequieto. Não tenho como negar. Não consigo virar os olhos pra lado algum. Posso cruzá-los com outros. E o que irão pensar? Mas tá tudo tão nublado? Sou um neurótico. Ah, melhor ser isso do que achar normal. Mas algo mais me incomoda. O que é? Lembro de alguma coisa.

“...éramos só eu e ela. Há pouco tempo. Na beira de um lago. Um corpo novo. Delgado. Resplandecente em  sua pouca idade. Cabelo macio,  destacado em meio à luz do luar. Negro como os olhos, onde os meus se perdiam. Petrificados, como  o meu corpo. Assim eles iam caindo mais e mais em sua direção.  Até onde que podia  chegar minha boca  e meu nariz. E aos poucos veio a decepção: um baita cheiro de gambá infectando o ar de  flores.”

Que desagradável.  E como sinto o cheiro de dois meses atrás? ... Não, não pode ser. E tem uma mão? Está  roçando minha perna? É ela? Mas como?

- Ernestão? Sou eu, Alberta Medusa, lembra? Não sabia dessa sua preferência. Mas que maravilha. Havia algo de diferente em você. Tinha certeza. Prometo que vou me tratar. Acabar com o meu mau hálito e viveremos juntos. Para sempre.

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ENFIM, VIDA

Bruna Nehring

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“Gosto muito de você, Martha, como uma irmã...”

“Então, André, por favor, não me dê mais carona quando me vê no ponto do ônibus, não me chame mais para consultar textos de arquitetura, não queira me levar para casa na saída da faculdade.... nunca poderia ser sua irmã...”

                Pé no chão, engolindo em seco. Eu sabia de Júlia, a namorada já de muito tempo do André. Até considerava-me melhor que ela em muitas coisas, mas não tinha por quê agredir-me, anular-me, esperar mais.

                Havia aprendido com André a amar o mar e vencer-lhe o medo; havia descoberto nele  um homem  aplicado, eficiente (...quem consegue trocar lindamente e limpamente um pneu de carro em poucos minutos e ainda com um sorriso radioso?...); e ser atencioso, sociável, generoso (….. distribuir aos colegas de turma, com carinhoso tom de brincadeira, uns ovinhos despretensiosos  junto com um abraço e votos de Boa Pascoa); e quem esbanja na praia tamanho corpaço com tanta simplicidade e modéstia como fosse um atleta invisível...

                Quantas vezes  havia-me arrependido de ter cortado o contato para não sofrer. Quantas vezes havia esperado que ele se reaproximasse dando-me uma chance de  conquista-lo...

                Muitos meses e um sonho a ponto de ser jogado numa gaveta junto às bijuterias passadas de moda.

                E o telefonema.....

                Bastou um telefonema.

Aí é que a memoria esconde-se nas aguas mornas e placidas de um lago tão azul, tão sempre iluminado que o arco-iris passou a ser paisagem permanente.

                Parece uma história tão simples, tão corriqueira. O sonho dourado de todo sonho de amor: conseguir e conquistar para sempre aquele que havíamos considerado inatingível, perdido.

                E agora, a caminho de nossa casa de praia, parados na estrada, com meu menorzinho sentado no colo, dou um jeito de acariciar a cabecinha morena de Tomás, no banco traseiro, e na reconstrução de uma cena longinqua mas ainda viva e vibrante, lhe digo:  “vai lá Tomasinho”  vai ver como um homem bacana como o papai consegue trocar um pneu sorrindo e quase sem sujar as mãos...”

                Ele vai e eu fico: a outra metade da família, confiante. À noite estaremos todos em casa, só com o barulho do mar  e o chiado da espuma contra o casco do barquinho. Amanhã é dia de catar conchas, de fazer castelos na areia, de aprender a remar.

De viver.

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Em vida

María Cecilia Fernández Uhart

Ele se matou.

Na boate.

Que diferença faz onde?

Como?

Como ela não se deu conta do porvir?

Por que não leu os sinais?

De que adiantou a convivência, o amor, conhecer o significado de cada gesto.

Se o conhecia melhor que a si própria (pelo menos assim pensava...), por que não pensou ?

Adivinhava desejos, interpretava suspiros, executava pedidos que nunca foram feitos.

Mas como adivinhar? Ela, que se sentia tão próxima.

Ela sempre ajudando, obedecendo ordens explícitas, não viu o implícito.

Navegava distante, a margem de suas intenções.

Ele na dança doentia e brusca da voz

                                                                     doce

                                                                                   amarga

                                                                                                  áspera             

                                                                                                               gentil                  

                                                                                                                              triste

                                                                                                                                              risonha

                                                                                                                                        intermitente de humores

                                                                                                                                                      bipolar.

A distância intransponível deixava o amor sem porto, flutuando.

Paixão? Não. Seu amor tinha águas de lago. Não era tempestade.

O amor dele? Existia? Ele a desejara? Será que um dia pensara em tê-la nos braços ?

Claro que sim. Como podia duvidar...?

Seriam? Não seriam? Amantes? Talvez.

O que o levara a castigar a todos de forma definitiva?

(Diz Freud que o suicida, por não poder matar a todos, mata a si próprio; será?)

Se matara.

Deixando lastros. Laços além vida. Nós.

Mais que saudade, mais que amor, além da incompletude, da incompreensão, da frustração, da culpa, da tristeza, dessa dor sem cura. Deixara o mistério.

A morte é o fim.

Não há mais a quem perguntar.

E esse amor, que não passou, que brilha nos olhos dela; ainda tem perguntas...

Ainda quer saber dessa história de amor. Quem seriam?

Não fosse quase vivida.

Interrompida.

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Meu verdadeiro amor

Claire Feliz Regina

Aos dezessete anos encontrei,

Não, o homem da minha vida,

Mas o pai dos meus filhos

E uma breve despedida.

 .

Meu novo amor,

saiu das páginas da internet,

diretamente, para a mesa de um bar.

Chegou dizendo:

Eu, sou o homem da sua vida.

E eu ingênua acreditei, não percebi que ele,

Assim como eu, saia

de uma relação mal resolvida.

 .

Eu era o seu espelho

e ele o espelho de mim.

Tinha tudo para dar certo mas não deu.

Nosso amor chegou ao fim.

 .

Não suportando a pressão da ex,

ele chegou e me disse,

na mesma mesa do mesmo bar:

você é a minha felicidade infinda

que se finda antes de começar.

 .

Minha procura continuou,

Logo depois, sem saber

Se era ou não amor,

Uma amizade colorida

Coloriu a minha vida,

mas depois perdeu a cor.

 .

O meu espelho voltou.

Chegou dizendo, acredite no meu amor.

Desta vez eu vim para ficar.

 .

Não sei se posso acreditar nesse amor,

Se era o homem da minha vida,

por que deixou-me percorrer sozinha

o  caminho da minha dor.

 .

Este é o fim da minha história

Mas não o fim do meu amor...

 .

Que tão intenso,

Neste mundo tão imenso

vai  um dia lhe encontrar

e vai trazer você para mim,

ou, para você vai me levar.

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DISTÂNCIA

Ethel

Palavras de uma mulher apaixonada 

Quero partir com o homem que amo

não quero pensar no que este amor custará

não quero perguntar-me se ajo insensatamente

não quero saber tampouco se ele me ama

Quero partir com o homem que amo 

(Antologia Poética- Bertold Brecht - tradução Edmundo Moniz)

 

“Por quê nos separamos, se há tantas semelhanças entre nós ?”

Ambra perguntava-se, ao caminhar na longa avenida arborizada, na saída do parque. Sem lágrimas, tentava encontrar uma explicação plausível. As brisas roçando-lhe o rosto,   as imagens em seus olhos, transportando-a  para um passado distante.

Ela era uma criança de 5 anos, "choramingona" do vestido rosa - sua mãe sempre lhe dizia que ficava bem de rosa ou vermelho. Dia ensolarado no escorregador do parque escolar.  Ele já professor do infantil  auxiliando-a, com carinho e  firmeza.

Cresceu. Via Décio algumas vezes com amigos, nas lanchonetes. Enquanto tomava sorvete, olhava-o à distância, pensando como seria bom ter a idade dele,  compreender as conversas, rir e permanecer ao seu lado.

Os anos passaram, soube que ele partira para a capital. Provavelmente, não suportava aquela pacata,  cidade-provincia, onde todos acreditavam que o Brasil seria uma potência.  Na sua inocência,  cantava o "eu te amo, meu Brasil, eu te amo", como mandava aquele general sorridente: Médice.  Era uma época macabra.

Na adolescência, não tivera namorados, insatisfeita e triste. Logo ao término do colegial, migrou para São Paulo, como  muitos jovens do interior do estado. Embora as notícias em preto e branco da TV, mostrassem cenas de violências e o trânsito caótico, partiu. Se persistisse, sepultar-se-ia. Necessitava de outros ares, mesmo que poluídos.

Assim na cidade desafiadora, com trabalho, matriculou-se no curso pré-vestibular da avenida Paulista. O mundo começou a ter sentido, principalmente porque o reencontrara. Décio era um dos professores de literatura, a matéria que ela mais amava.

Estava casado e bem diferente. De bom moço, tornara-se um  “ator”.  Seus cabelos compridos, presos em “rabo de cavalo”, ele proclamava. Repitam: que livro deu origem ao romantismo ? Bruuuu, deixava cair o microfone,  os alunos orquestrados, gritavam: Suspiros, Poéticos e Saudades de Gonçalves de Magalhães. Suas aulas eram brilhantes, divertidas e aguardadas.

No início não a reconheceu. Gargalhou ao lembrar do  passado em vestido rosa.

Uma noite,  na saída da aula,  Ambra melancólica, cantava:  "Ninguém me ama, ninguém me quer...", quando ouve uma voz: "eu te amo, eu te amo, ou, ou, ou". Ao seu redor, todos sorriam. Foram à uma lanchonete, conversaram longamente. Perceberam as afinidades. Ele consciente de sua condição matrimonial e do vestibular que ela enfrentaria, não mais a convidaria.

Quando Ambra ingressa na universidade, Décio retoma contato e confessa que estava em seu terceiro casamento com duas filhas pequenas. Após esta revelação, ela afasta-se. Não  seria responsável por sua outra separação; ainda que sofresse muito.

Suas vidas tomaram outros rumos e somente décadas após, reencontraram-se em outra entidade educacional: ela bibliotecária e ele coordenador pedagógico e divorciado.

Conviveram durante 7 anos,  felizes, sem discordâncias. Porém o trabalho dele exigia muitas viagens. Suas filhas estavam necessitadas de sua presença. E separam.

Ao  acomodar-se num banco do shopping, em frente a uma livraria,  Ambra retoma  seus questionamentos.

“Fora um relacionamento perfeito: completavam-se fisicamente e  eram almas afins, como diziam. Ele, seu alter ego.  Eram tão civilizados, a ponto de não suportarem as brigas (que não tiveram) e ao renunciarem-se,   estão evitando  futuras recriminações ? Seria a diferença de idade ? Ele teria receio da  menina rosa ? Ele buscaria um amor  sublimado, literário? “

Décio se cala quando é questionado.

Um mistério que Ambra não decifra e aceita sem mágoa, admirando e amando-o As saudades  interrompidas em longas “conversas”, no messenger e internet, a distância.    

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Amor pelos irmãos

Heitor Feitosa

Jorge deixou pra trás a família, os amigos e as expectativas de realização material em troca de uma dura realidade de violência e pobreza.  As sandálias do jovem padre italiano deixaram os campos e uma vida de tranqüilidade e conforto em sua terra natal para pisar o chão de terra batida e vozes famintas da periferia de São Paulo. Eram meados da década de 70. Num período onde, política e religião confundiam-se e entrelaçavam-se amistosa e antagonicamente. O clamor por um Jesus mais humano e menos divino e, supostamente distante da realidade do povo se fazia cada vez mais, crescente na igreja da América Latina. À luz da interpretação de muitos que acompanharam atentamente o recém encerrado Concílio Vaticano II diversas comunidades se ergueram nas periferias e exercendo papel espiritual e social.

O povo carente e que vivia “como ovelhas sem pastor” encontrou naquele homem de aparência serena e sorriso fácil, a imagem daquele que lhes mostraria um caminho de paz diante de tanta dor e sofrimento. Jorge era um entre todos, sabia que a experiência da partilha e do diálogo valia muito mais que elocubrações teóricas da teologia ou filosofia. Para ele os olhos estavam no alto, mas os pés no chão de tantas dores de um povo que suplicava por dias melhores.  

Os anos fizeram do padre, mais que um pastor. Ele era amigo, querido um irmão. Todos se reuniam na praça para ouvi-lo com grande atenção. Seus olhos fitavam cada um ali presente como se pudesse penetrar-lhe a alma e reconhecer todas as suas aflições. Sabia ser duro quando preciso, mas suas palavras também eram remédio que trazia conforto e esperança aos aflitos. Lutava pelos direitos da comunidade ecoando a voz de tantos. Quando no caso de uma grande enchente, reuniu os líderes e organizando o povo com muita paciência e fé reergueu não somente casas, mas sobretudo a dignidade daquelas pessoas.

Mas eis que um dia, uma carta vinda de um bispo provocou em todos grande dor. Padre Jorge que já criara raízes naquele chão sofrido da periferia paulistana, seria transferido para uma outra paróquia. Grande foi a comoção, até uma certa revolta com a decisão da Eminência, porém Jorge recordando os votos de Obediência de sua ordenação aceitou a decisão e partiu deixando muitos "filhos" saudosos de sua missão.

O padre ainda voltou algumas vezes para visitar os amigos do local, sempre causando grande emoção com suas palavras e com seu abraço sincero.

Quis o destino ou a providência que em uma tarde muito ensolarada, seca e muito quente o já idoso padre viajando em missão junto com outros religiosos, estivesse sentado no banco da frente de um carro que numa curva perigosa, chocou-se violentamente com um caminhão levando a cabo a vida deste homem tão querido que trouxera para tantos o verdadeiro sentido das palavras Fé, Esperança e Caridade.

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MENINAS

Maria Inês Zocchio

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São lindas as escadas de mármore branco do Museu Paulista. Na verdade, o prédio é um palácio e, embora digno de um conto de fadas, presta-se a guardar em suas paredes uma parte da História brasileira, em especial a paulista.

Guardar ou também esconder? O que está por trás dos retratos posados dos barões do café e suas famílias? Que histórias verdadeiras escondem fotos amareladas de mulheres-meninas, do início do século passado?

Ela fazia essas conjecturas enquanto visitava  o acervo iconográfico do museu e munida de um bloco de papel e caneta fazia algumas anotações pedidas pela professora do curso que se propusera a fazer.

Não satisfeita em apenas pensar, vira-se para a colega ao lado e apresenta suas ideias. Para seu espanto ouve da outra que isso também lhe passara pela cabeça quando deparou-se com uma foto que lhe lembrava a avó que ela amava e que, como muitas mulheres-meninas de seu tempo, não tivera outra escolha de vida a não ser o casamento....

Um tanto quanto curiosa, pensa em perguntar mais alguma coisa sobre a avó da colega mas, com medo de ser deselegante, prefere continuar fazendo comentários sobre a sociedade da época. Porém,  em dado momento, a própria amiga volta a falar da avó. Conta então como ela  enfrentou preconceitos  ao trocar, naquele tempo, um casamento que lhe dera estabilidade e quatro filhos pela companheira que foi seu grande amor e com a qual viveu, até que a morte veio, calmamente, surrupiá-la para si.

 Entre lágrimas contou-lhe a história, pois dos quatro filhos sua mãe foi a única que entendeu e aceitou a opção de sua avó pois percebera que, a ela não tinha sido dado o direito, sequer de se conhecer, para poder fazer suas escolhas ao longo da vida. Compreendeu também a grandeza desse amor que as manteve sempre unidas levando a avó, agora viúva, a desejar partir também para unir-se à companheira, quiçá na eternidade.

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Contraponto    

Ingrid

 

            Ambos amam a música. Ele iniciou seus estudos através do baixo que ganhou do pai. Ela imergiu no violino, emprestado da professora de Artes. Ele desistiu, não conseguiu retribuir na afinidade e sensibilidade que a música pede. Ela após o falecimento da mãe, não teve outra opção e abandonou as pautas.

          Ele, no final da adolescência, morando na capital, decidiu prestar vestibular para Bioquímica. Tentou enredar no movimento estudantil, mas foi expulso. Divergências. Ela ainda no interior auxiliava na colheita de grãos e frutas.

           Época de repressão política. Ecoava na cidade Chico Buarque cantando “O que será que será”.  Cada qual tentava antever o seu caminho.

           Ele após concluir a faculdade preferiu trabalhar com a informática, no início da década de 80, e buscou se aperfeiçoar. Ela veio para a capital, maravilhada com a cidade cinzenta e temperamental. Conseguiu uma bolsa de estudos em Administração, na PUC. O seu tempo era consumido pelos estudos, cálculos matemáticos complexos, e o trabalho mal remunerado. Lutava para manter a bolsa.

           Ele já estabilizado financeiramente. Ela a procura de estágio.

           Ele promovido. E, ela no estágio, em uma grande empresa. Com um salário melhor saiu da pensão e alugou uma quitinete no centro da cidade.

           Ele continuava sozinho, saía de vez em quando na companhia dos amigos para beber. Ela terminava a faculdade e se efetivava no emprego.

           Surge uma viagem de negócios. Ele como um dos representantes do setor de informática. Ela acompanhava o chefe para avaliar uma proposta de um projeto gráfico.

            Hospedados no mesmo hotel. Conheceram-se-conversaram-trocaram-telefones.

            Passaram a se encontrar com mais frequência.

            Ele árido, brusco, terra de difícil acesso. Ela a descoberta, a avidez e o caminho.

            O contraponto. Ele e ela, duas vozes, dois instrumentos, que resolveram trilhar as notas melódicas da pauta-vida.

            Durante o andamento, ele decidiu interromper mais uma vez a música. Ele viajou para o Acre-seco. Ela silenciou.

            A harmonia se perdeu na cidade nublada. Ambos sentiram a ausência de ritmo, algumas notas espaçadas.

           Ele regressa. Ela retoma a peça musical ainda inacabada, tantas vezes trabalhada e discutida, para se aproximar de uma obra-prima. Embora muitas vezes, ele destoe em algumas notas de afeto e compreensão.   

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Na Espera   

Miguel Arcanjo L Filho

“... o jovem na terceira noite de ronda aproximou-se da casa dos fundos, onde dormiam os criados, e penetrou no quarto de Marlene (apartamento), parceira do colégio.

A garota, assustada, quis gritar, mas explicou que vinha com as melhores intenções.  Passou uma noite deliciosa, só comparável à minha primeira noite com a vizinha.  Lá pelas seis, saiu do quarto e foi concluir a ronda, pelos apartamentos ao lado, lançado olhares terríveis por todos os lados. Um dia depois acordou, e tudo não passava de um sonho!

Resolveu arriscar, agora, de verdade, conversamos... ela parecia que  chorava, seus olhos ficaram irritados,  mas ela estava prestes a se casar, com um colega de faculdade , recebeu elogios francos, mas não tinha jeito, isto era real.” Diante disso ele então decide fazer uma grande viajem, se muda de país, decide ingressar numa congregação religiosa e passa a se dedicar a poesias e reflexões sobre o amor passando o resto de seus dias sozinho.

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Uma história de amor

Tânia Alves da Costa

“Existem três coisas que os homens podem fazer com as mulheres::

                           amá-las, sofrer por elas, ou torná-las literatura.”

Stephen Stills

Agora só tenho pensado no meu epitáfio: aqui jaz uma mulher que terminou sua viagem pela vida como uma peregrina e não como uma turista. Demorei tanto para aprender isso e descobrir a felicidade, que não tenho mais tempo para usufruir, tudo acabou. Na verdade, até prefiro assim, pois é melhor morrer a ficar com as sequelas do AVC. Já estou na UTI quase há um mes depois da cirurgia; minha cabeça ainda está toda enfaixada, rasparam todo meu cabelo, que desperdício! Eu gastava tanto dinheiro com ele! Não consigo falar e nem movimentar o lado direito do meu corpo. Não, definitivamente não posso mais viver sem dançar. Onde está meu dançarino? Até agora ele não veio me visitar ou talvez ele tenha vindo e eu não o vi por estar sedada, sem dúvida prefiro acreditar nesta última versão. Ah! Como o tempo custa a passar aqui! Um computador agora até que ia bem agora, ajudaria a passar o tempo. Aliás, foi assim que tudo começou...

Passei anos da minha vida num casamento desgastado pela neurose de um marido ciumento, que só suportei escrevendo. Escrever para mim sempre foi mais que um hobby, na verdade é como uma necessidade biológica de respirar.

Acho que foi por insistência de uma amiga que entrei numa rede de relacionamento na internet, e assim, conheci um jovem brilhante. Eu me apaixonei pelos seus textos e poesias e ele pelos meus. Ficamos meses trocando e-mails sobre nossos universos literários. Acabamos viciados e dependentes desse contato virtual diário. Nunca comentávamos de nossas vidas pessoais ou profissionais, porém um dia ele propôs nos conhecermos. Eu não queria, pois tinha receio de perder o encantamento do mistério, mas ele insistiu tanto nisso. Tivemos dois encontros apenas e o que eu temia aconteceu, eu fiquei com aquela sensação quando assistimos a um filme de um livro que já lemos; o livro sempre é bem melhor! O mistério de nossas vidas acabou; ele era solteiro e eu não escondi que era bem mal casada. Depois disso, nossa relação na internet mudou muito e ficou tão sem graça para mim. Falando em sem graça, a enfermeira está furando meu braço de novo.

Na verdade só bem mais tarde eu compreendi o que realmente aconteceu nesta época... Na verdade eu era tão viciada em ficar conectada que vivia desconectada da vida real. Quem me fez perceber isso foi meu dançarino. Aliás, onde ele está? Ele sempre me chamou de minha escritora, desde seu primeiro e-mail. Ele começou mandando e-mails sobre o quanto apreciava meus textos e poesias e depois começou a me convidar para sair e dançar. Eu até tentei argumentar com ele que isso não daria certo, expliquei que eu tinha dois pés esquerdos; mas isso não o desestimulou, ele insistiu afirmando que era professor de dança e que seria uma troca perfeita. Ele poderia aprender a escrever comigo e eu poderia aprender a dançar com ele, simples assim!

Nunca havia me sentido tão viva, tanto minha mente como meu corpo eram amados por aquele homem. Aprendi não só a dançar, mas a amar também. Sentia um prazer em compartilhar meu gosto literário. Ah! A forma como ele me olhava, aquele brilho e encantamento em seus olhos... Estava tudo indo tão bem, os papéis do meu divórcio já estavam saindo e íamos viajar juntos... De repente cá estou... Ah! Deus ajuda vai! Não me importo em morrer dormindo...

te procuro

nas coisas boas

em nenhuma

encontro inteiro

 

em cada uma

te inauguro

 

 

existir

não se resume

a este momento

nunca

 

nesse momento

existir

se resume

 

Estes foram feitos para nós meu amor:

toda mudança

desse dia

uma dança

 

Ah! Sei que você gostou minha querida, eles são da Alice Ruiz.

Deus, se por acaso, eu estiver sonhando que meu amado dançarino está aqui agora lendo poesias para mim, por favor, não me acorde!

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Ay, este azul

Teofilo Tostes Daniel

 

Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.

(Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas)

                Um caos de formas, cores, luzes e gentes. Vozes chamam incessantemente para um embarque imediato. E ela, ali sentada, simplesmente aguarda. Aguarda e observa, espectadora que é. Ouve conversas, torrentes de palavras, que se desgarram de seus contextos para habitarem novos sentidos dados pela escuta flutuante daquela mulher, em contemplativa postura diante do ruidoso turbilhão.

                Anita era aquele tipo de pessoa que se destaca pelo silêncio. Não exatamente pelo silêncio, mas por um consciente mutismo, opção sua desde que descobrira a vaniloquacidade de quaisquer palavras. Conhecia bem a inutilidade do verbo diante de argumentos de força. Por essa razão, era lacônica e precisa, como um haikai.

                Ali, imersa em seu silêncio, a beber o mundo com os olhos, estava, quando um homem lhe chamou a atenção. A familiaridade daquele rosto, perdido no tempo, seria certamente reconhecida em meio a qualquer multidão. Aqueles olhos... Num impulso, levantou-se e foi até ele.

                – Com licença. Provavelmente você não me reconheça. Aliás, eu nem sei se você é você. Quero dizer, se você é quem eu estou pensando que é. Qual o seu nome?

                Disse tudo como uma tempestade, com a antiga eloquência perdida. Abdicada. As palavras quase montavam umas sobre as outras, para sair mais céleres. Eram como animais acuados que, num repentino rompante, encontram um ponto de fuga.

                – Ro...

                Sim, era ele. Anita jamais esqueceria aqueles olhos do mais belo azul turquesa que já tinha visto na vida. A medida de sua mudez se ligava estreitamente àqueles olhos, que ela havia conhecido quando tinha entre oito ou nove anos, na escola. Estavam às vésperas da festa junina e ela iria dançar com Rogério, o dono daquele azul.

                A turma se via mergulhada nos ensaios da coreografia da quadrilha, com seus pulos, gritos e túneis, em que todos os pares seguiam os noivos. Anita chegou a ser cogitada para o papel da noiva, mas abdicou. O noivo já estava escolhido de antemão, e ela não queria dançar com aqueloutro menino antipático e metido, dono de estúpidos olhos, verdes e demais convencidos de si.

                Anita era só ânsia. Queria logo vestir-se de caipira e dançar, mergulhada naquela imensidão que sequer intuía, num azul que só parecia existir na intersecção entre céu e mar. E naqueles olhos... A roupa já estava escolhida. A maquiagem, de bochechas vermelhas, sardas e dente preto-faltante, era testada quase todo dia. Arriscava acabar com o estojo inteiro de maquiagem da mãe antes de chegar o dia da festa. E como demorava para chegar esse dia!

                Por mais que uma iminência demore, no entanto, ela sempre chega. Porque os únicos tempos simbólicos são o futuro e o passado. O presente não se enxerga, nem se apercebe. Ninguém coloniza o hoje. O presente simplesmente é – ligação entre a memória e o sonho. E, gozosa ou desgraçadamente, é nele que se vive. Assim, a festa, que existia como futuro, de repente chegou defronte do portal do agora, pronta para habitar o passado. E foi no agora, no instante, no presente que tudo aconteceu. Mas Anita só se apercebeu de tudo quando a festa já era passado. Pretérito imperfeito: já era.

                Pouco antes da apresentação da dança, quando estavam se alinhando os pares, a diretora da escola cismou que aquilo não estava direito. Como puderam deixar uma menina tão alta ensaiar esse tempo todo com um menino tão diminuto? Teriam que rearranjar os pares. A professora chegou a esboçar alguma defesa da desordem já estabelecida, mas não teve jeito. A diretora colocou Anita para dançar com um menino comprido e desengonçado, de olhos foscos, baços. Já Rogério deveria dançar com uma menininha ruiva e sardenta, de olhos muito grandes e negros, semelhantes a uma noite sem lua.

                Indignada, Anita bradou contra aquela arbitrariedade. Apesar de sua pouca idade, sabia argumentar bem. Não se intimidava diante de autoridades que não se mostravam legítimas. Questionou de todas as formas possíveis a diretora. Indagou o porquê do império métrico criado para a apresentação, quando tudo sairia melhor se cada pessoa dançasse com quem tem afinidade. Além disso, mudanças naquele instante, quase na hora da apresentação, poderiam confundir a todos. Mas a diretora era irredutível. Não era estético combinar pares tão desproporcionais, como eles.

                Enquanto discutia com a diretora, Anita procurava os olhos de Rogério. O menino diminuto permanecia com o rosto inclinado para o chão, mas a olhava, vez em quando. Seu olhar, quase súplice, parecia pedir que ela desistisse daqueles questionamentos todos, pois aquilo não daria em nada. Como quem falasse "deixa, deixa para lá..." – e ela não deixava.

                Somente quando a diretora afirmou, quase aos berros, que era ela quem mandava ali e seria do jeito que ela determinasse, é que Anita percebeu que todas as suas palavras foram inúteis. Contra argumentos de força, de poder, as palavras valem nada. Intuiu isso e calou. Calou as palavras, a voz e o choro. Dançou com o menino alto, desengonçado e de olhos baços. Em silêncio. Só não calou as lágrimas, que insistiam em lavar seu rosto. A maquiagem ia ficando cada vez mais borrada pelos caminhos abertos por esse choro silencioso, brotado quase à revelia da dona do pranto. Ao fim da dança, em silêncio, se retirou. Não havia mais festa. Nunca houve. Não para ela, que tanto a havia esperado.

                No banheiro, lavou o rosto. Retirou toda aquela maquiagem sem sentido. Tinha vontade de trocar aquela roupa, aquele vestido florido, comprado especialmente para a festa que não houve. Com os olhos vermelhos e inchados, obstinadamente lacrimais, chegou séria perto da mãe. Disse que não queria mais estudar naquele colégio. A mãe quis saber por quê. Ao se ver defrontada com a necessidade de explicar o que houve, Anita chorou alto. Agarrou-se à mãe e pediu, por favor, que a trocasse de escola. E nunca mais pisou ali.

                – ...berto.

                – Como?

                – Roberto – repetiu, um pouco mais articulado.

                Não era ele. Mas como podia ter aqueles olhos? Nunca havia visto olhos iguais, até aquele dia. Anita não sabia muito o que fazer com aquilo. Nem saberia o que fazer, caso realmente encontrasse com Rogério. Pensou que o verdadeiro dono daquele azul fosse ainda um menino, talvez. Um menino que ficou preso ao passado. Talvez fosse nela, para sempre, aquele menino que ela nunca mais vira.

                – Então você não é você. Digo, não é quem eu pensava que fosse.

                Anita notou o semblante daquele Roberto. Parecia abatido. E ela parecia perder a eloquência, novamente. Mas ainda tentou se agarrar a um resto de palavras que lhe vinha.

                – Desculpe, Roberto. Devo estar te aborrecendo com isso. Você está indo viajar e aparece uma louca...

                – Imagine, é que estou um pouco atordoado. Na verdade, estou chegando de viagem. É a primeira vez que viajo de avião. Segunda, a primeira foi a ida. E ainda trago na bagagem as cinzas do meu irmão, que eu mal cheguei a conhecer.

                –

                Acenou um adeus, mas não conseguiu dizê-lo. Não conseguiu, também, encontrar palavras para falar ao desconhecido, diante de tudo quanto ele havia dito. Mas quem consegue encontrar palavras diante da vida, do incomunicável, do desconhecido, da ausência, da morte?

                O que dizer para a própria finitude?

 

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