VIAGENS DENTRO DA VIAGEM
Conheci Tiago, amigo de meu filho, que nos relatou sobre a viagem-projeto pelo nosso continente:
“ Enfrentávamos drásticas mudanças de temperatura, que variavam de 7°C a 37°C em ônibus lotados, caminhões, barcas, pequenos botes. Raro conforto. Uma aventura pela Floresta Amazônica, nos Andes, fronteira com o Equador, a uma altitude de 4723 m acima do nível do mar.
Em um dos trajetos, tememos pela nossa vida, pois a roda do caminhão do exército estava rente ao penhasco, na estrada que margeava montanhas. Sobrevivemos. Apesar do risco, as paisagens eram de uma beleza ímpar.
Em todas os locais, fomos recepcionados com frutas, quitutes e presentes como a galinha Carmencita. Não conseguimos consumi-la, tornou-se um dos membros da “família”. Eram vilarejos desprovidos de água encanada, escolas, hospitais, de uma precariedade inimaginável.
Éramos cinco: na direção Mayra, Vando como roteirista, Daniel, o designer, Pedro no som e eu no lap top. Tínhamos sempre no mínimo duas funções. O nome de nosso grupo é TCI-Teatro Coletivo Itinerante. Encenávamos peças infantis, sobre temas da localidade. Títulos: “Peixinho Cascudo”, “Jacaré Pensador”,“O Condor Sábio” , abordando a poluição, higiene, paz e não à xenofobia. Adaptando várias peças em espanhol, dependendo dos locais.
Conhecemos um lugar chamado Palma. Situava-se no meio de um rio, no mangue, repleto de excrementos e lixo, jogados pelos habitantes. Não havia ruas e sim pontes que ligavam as casas. Ficamos sem banho em meio a tanta água fétida.Impossível dormir: no chão, o esgoto; pulgas, ratos no teto....Só vendo para crer !
Na bagagem de volta, trouxemos histórias, experiências e, pasmem, um representante das cores brasileiras: mestiço de índio com olhos verdes. Um garoto de 10 anos que interpretava alguns papéis e nos acompanhava aos povoados próximos. Pensando na nossa partida, já sentíamos saudades do curumim. Não imaginávamos o porvir.
Órfão de mãe. Seu pai, de origem branca, suplicou-nos: - “Sei. Tô perdendo meu curumim. Peço a Deus e a ocês, pra ele ter outra vida. Confio em vosmecês.” Era sua tentativa de uma linguagem formal, no pedido solene e emocionado, para que o adotássemos.
No princípio, ficamos envaidecidos pela declaração, mas tentamos dissuadi-lo deste “projeto” , pois nenhum de nós tinha pretensões em ser pai ou mãe. Porém foi inútil. Estávamos ligados afetivamente ao menino, principalmente eu. Nos seguia, e em seu olhar, ansioso pela nossa concordância, sem imaginar que locais seriam aqueles, não se considerava um habitante local.
Discutimos e até meditamos para decidir. Fiquei imaginando a cara de surpresa de meus pais, ao me verem chegar de mãos dadas com ele, dizendo: este é o seu neto ou filho, como quiserem, mas ficaremos com ele. Vocês concordam ?
Já se passaram cinco anos. Não há arrependimentos. No início, ele, curioso, apavorava-se com o trânsito, tinha pesadelos. Saudoso, algumas vezes lamentava e chorava a falta do pai biológico. Aprendeu a cuidar-se: higiene e disciplina, ao que não estava habituado. Pai e filho se correspondem através de carta, pois lá não há telefone, muito menos Internet.
Meus pais, sempre incríveis, matricularam-no na escola e tratam-no como outro filho. Embora a dificuldade e a adaptação, o conforto e um mundo diferente o seduzem. Sempre o alertamos sobre os riscos dos habitantes da grande cidade. Esforça-se no aprendizado das disciplinas escolares, adora ler e continua participando do teatro. Tem sede e pressa. Acredito que será um aventureiro e vou acompanhá-lo. Ah, o nome dele ? Richardson.”
Avenida Paulista
No movimento do “rush” paulistano, na saída/entrada do Metrô, os transeuntes caminhavam indiferentes ao jovem musicista. Ele, de pé, magro, menos de 18 anos, roupas surradas, tocava o Bolero de Ravel. Roto também o seu violino. O instrumento exigindo reparos, algumas notas saiam desafinadas. O rapaz tocava sem se importar com seu escasso público. Executava como um solista numa orquestra. Sua expressão de amor pelo som produzido, sua entrega fez-me parar diante da delicadeza. No chão, a tampa do instrumento despertou-me a realidade. Deixei um trocado, ele sorriu.
Abril – 2010
Avenida Paulista
De uma das janelas do "quarto" da Casa das Rosas, observo os galhos ao vento, a tranquilidade das árvores resistindo bravamente aos sons intermitentes da avenida. Em seus troncos, liquens indicadores de boa qualidade do ar, parecem-nos dizer: aproveitem !
Esta casa é um pouco o meu lar. Os cursos e acontecimentos culturais plasmam na minha "pele mental". A dor universal, esta uma condição humana, possibilita-me transformá-la em algo criativo e literário.
Neste pedaço da Avenida Paulista, em frente à cultura de rosas e muitas rosas, está o Hospital Santa Catarina. Em seus corredores, o pesar e a alegria da maternidade. No amplo salão, há um jardim cercado/gradeado (uma metáfora ?). Quem dera possa interagir com o perfume das flores da Casa das Rosas, atenuar o infortúnio, a angústia, sejam dos usuários temporários, dos profissionais e de seus familiares.
Ethel Naomi - fevereiro/11
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O primeiro relato do Tiago é lindo. Acho que não foi lido durante o curso, não é? De qualquer forma é muito amor do pai que o entregou para uma vida melhor, do Tiago que o adotou, dos pais dele que o ajudaram a criar e aposto que o Richardson só pode sentir o mesmo.
O segundo bem conciso e comovente. Gostaria de escrever assim.
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