Chegamos ao terceiro encontro do Escrevivendo Poesia! E a discussão que iniciei por aqui, tomou fôlego só ao vivo... Começamos o encontro tentando descobrir, afinal, se um texto teria os mesmos significados se escrito em prosa ou se em verso. A forma é só uma roupagem? A apresentação e a organização das palavras interferem no seu significante? Para ilustrar essa questão, apresentei um exemplo de um texto produzido para a oficina. Os versos eram assim:
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“não sei se sou eu ou se é você
afinal já estamos misturados”
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Sugeri que escrevessemos estes dois versos assim:
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não sei
se sou eu
ou se é você
afinal já estamos misturados
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O que mudou?
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Sugeri, ainda, que pensassemos no poema de Wislawa Szymborska e no motivo pelo qual ele é escrito em versos. Esta é apenas uma escolha estética ou o texto diz algo sobre a própria poesia, através de sua forma?
Essa discussão funda, também, um lugar de leitura, que toma partido, que questiona as coisas que lê. Lugar de onde partimos, certamente. Se, enquanto leitores, refundamos e ressignificamos as palavras, seus sentidos possíveis, esse movimento só é possível, no entanto, a partir de um enfrentamento que o texto propõe. Para experimentar essas possibilidades de luta com o texto, indiquei, a quem quisesse, que modificasse um poema ou um conto, passasse de verso para prosa ou versa-vice, e procurasse estabelecer uma reflexão sobre a recepção desse texto. Em qualquer um dos casos, há ganho e perda de significados.
E por isso, falamos também sobre a intencionalidade do texto, que talvez se estabeleça principalmente na forma. Cada escolha, seja ela de uma palavra em detrimento de outra, seja da forma fixa ou livre, seja de um fluxo de consciência em prosa, de uma narração em verso, enfim, cada escolha é imbuída de intenções, que abrem lacunas no texto ao mesmo tempo que fornecem pistas para a nossa compreensão.
Pensando nisso, conversamos também sobre algumas teorias de interpretação, e sobre as mudanças nos paradigmas ao longo da história. Se tivemos, por século, uma primazia do Autor e da Obra, experimentamos hoje visões que pensam o texto a partir do Leitor ou da Sociedade. Neste ponto, a questão talvez seja se há uma modificação no modo de circulação e de recepção dos textos com essas alterações conceituais e, mais, se os próprios textos se modificam de acordo com o tipo de olhar que os ofertamos.
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Seguimos o nosso percurso com a leitura e o comentário das produções dos escreviventes – que, durante esta semana, serão postadas aqui. Depois de um breve intervalo com o necessário café, lemos dois poemas do João Cabral de Melo Neto:
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LIÇÃO DE POESIA
1.
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Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.
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Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
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nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.
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2.
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A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.
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Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.
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Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.
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3.
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A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.
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A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis - naturezas vivas.
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E as vinte palavras recolhidas
as águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.
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Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
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GRACILIANO RAMOS
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Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:
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de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.
***
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:
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que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.
***
Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:
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e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.
***
Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:
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que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.
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Tentamos estabelecer, em um primeiro momento, a relação entre os dois poemas, a aplicação desta lição de poesia no exercício poético e na leitura, no encontro que é toda a motivação da escrita. E a partir do levantamento dos significados possíveis, cada participante fez um inventário das “vinte palavras” de que conhece o funcionamento, a evaporação, a densidade... Um pequeno inventário dos 5 ou 10 temas, sentimentos, problemas ou conceitos mais recorrentes na sua escrita.
A proposta, a partir daí, foi que os participantes trocassem entre si seus inventários. E cada um terá de escrever um texto a partir do universo poético do outro.
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Estou ansiosa para saber quem decidirá matar o “eu” da poesia, quem vai tomar tudo para si ou quem, revoltado, irá assassinar o poema.
(Certamente, eu serei surpreendida...)
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