Projeto Escrevivendo

O filho bastardo de Tawantinsuyu

Teofilo Tostes Daniel

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INDUÇÃO. O ser amado é desejado porque um outro ou outros mostraram ao sujeito que ele é desejável: por especial que seja, o desejo amoroso é descoberto por indução.

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Era uma mulher desejável antes mesmo de ser uma mulher. Quando ainda estava em vias de, mal saída da infância, já apetecia os homens. Ariana poderia preencher o lugar da mulher da vida de qualquer um. Era bela, inteligente, vinha de uma família rica. Tinha muitos predicados...

Sempre amou somente os mais desejáveis. Todos os seus namorados foram aprovados primeiro pelas amigas, depois pelos pais e familiares. Quando era a vez de ela prová-los, no entanto, o amor se esvaía. Teve os rapazes mais desejáveis de seu colégio e de seu círculo social. Todos belos, lindos, civilizados, sensíveis. Príncipes ou futuros gentlemen, herdeiros ou donos precoces de fortunas, que cheiravam a brilho e a cobre. Todos, modelos de beleza e sucesso. Não que o sucesso fosse lá muito importante, como havia sido para sua mãe, uma mulher de classe média alta que se casou com o empresário Aristarco do Albuquerque Prado. A mãe de Ariana estaria mentindo se dissesse que a construtora, as fazendas de gado e soja, e os milhões em bancos no Brasil e no exterior não conferiam um charme especial ao pai de sua única filha.

Mas quanto a Ariana, filha de um amor de conveniências, ela havia amado? Constantemente sentia que não. Não conseguiria ainda formular desse jeito, mas havia em si uma certeza muda de que só poderia amar um homem que ela também fosse capaz de odiar. Essa certeza a habitava silente, inconfessável dentro de si mesma. Ela sempre foi muito influenciável por todas as histórias de amor. Não conhecia, porém, esse amor capaz de comer sua certidão de idade, sua genealogia, seu endereço.

E assim foi até se livrar das influências todas que conduziam seu amar. Seu amar? Que, na verdade, a distanciavam das possibilidades de seu amar. Isso porque ela não havia nascido para desejar o desejável. Havia um fôlego de égua selvagem em si – e que ela mesma ainda ignorava – que não a permitiria jamais se contentar com o que todos aprovavam, com o que todos estabeleciam como os contornos precisos e saudáveis do querer. Seus quereres tinham um visgo insólito de insanidade que ainda se havia de descobrir. E o primeiro passo para esse caminho, que fatalmente a conduziria a se tornar aquilo que era, passava pela solidão.

Quando se viu sozinha na faculdade, sem a influência das amigas, que sempre eram as vozes primeiras das escolhas que ela fazia, pareceu parar de desejar. Passou mais de um ano longe de homens e de beijos. E que alívio sentiu ao deixar de entregar seu corpo ao que não lhe despertava os sabores e os olores da carne... Essa solitude lhe deu a oportunidade de assenhorar-se de si e de seu corpo, que parecia, então, jamais ter sido verdadeiramente seu.

Embora quisesse fazer Belas Artes, prestou vestibular e deu início ao curso de arquitetura. Seu pai jamais lhe havia falado nada a esse respeito, mas não imaginava que ele quisesse uma filha artista. Era mais simples justificar uma escolha que não era sua. Mas com um ímpeto que era ainda tão desconhecido e lhe parecia estrangeiro, saltava as cercas da própria grade curricular para cursar, com frequência, disciplinas do curso de artes como matérias optativas.

Supunha que estava à beira de se tornar um ser assexuado, quando se inscreveu para fazer aulas com modelos vivos. Durante quase meio semestre, desenhou com esmero belos corpos desejáveis de homens e mulheres que não lhe apeteciam em absoluto. Olhava sem pudor. Desenhava sem paixão...

Até que certa vez entrou naquela sala, como nos outros dias todos daquele semestre, e a sala já não era e jamais seria a mesma. Entre os modelos, já nus e dispostos nas mais diversas posições, estava: ele. Ariana o viu. Tudo desaparecera. Só restavam aquele homem, de traços indígenas e uma cicatriz de facada no ventre, e um dilúvio inaudito entre as pernas.

Passou duas horas e meia desenhando, com fúria, o próprio desejo incontido. Terminada a aula, fora falar com o estranho.

– Oi.

– Holla – respondeu, sem ter tido tempo de se vestir.

– Desculpe! Você ainda nem se vestiu...

O estranho lhe respondeu com um sorriso, incentivando que ela continuasse. Era o homem mais belo que já tinha visto na vida. Seu rosto não tinha qualquer traço europeu. Não parecia qualquer um dos meninos desejáveis com quem já havia ficado. Naquele instante, Ariana procurava palavra e refúgio...

– É que eu queria saber quanto você cobra. Eu não acabei de te desenhar.

Mostrou o desenho para o desconhecido. Um esboço rico em detalhes, ainda sem braços ou pernas. A cicatriz e o sexo, no entanto, já estavam prontos.

– Eu não sei ainda quanto vou ganhar. Acho que vão me pagar setenta ou oitenta dinheiros. Foi um amigo que me arranjou esse trabalho. É a primeira vez que faço – explicou, com acentuado sotaque castelhano.

– E você tem tempo? Pago o triplo, se for preciso.

– Tenho todo tempo do mundo...

– Quando?

– Quando quiser.

– Agora?

– Pode ser.

– Então vamos. Eu te levo para meu estúdio – disse, puxando o desconhecido pela mão.

– Calma, menina. Preciso de dois minutos para me vestir e de meia hora para eu receber o que vão me pagar.

– Ai, desculpe – disse acanhada.

– Juan Luna – disse, estendendo a mão.

– Ai, desculpe, desculpe! Nem me apresentei... Ariana – disse-lhe gaguejante, tateando palavras e sentires enquanto dava dois beijos e sentia o sexo de Juan roçar-lhe, leve, a coxa direita.

– Encantado!

Por mais óbvio que seja, não custa dizer que Ariana não desenhou nada naquela tarde. Levou Juan para seu pseudo escritório de arquitetura prematuramente montado pelo pai, numa ampla sala comercial perto de sua casa, nominado sacra e secretamente seu estúdio. E ali, o que fizeram fica a critério de cada um que lê este relato imaginar. O certo mesmo é que ela jamais se deu a ninguém da forma como o fez àquele desconhecido. E que jamais gozou tanto a vida. Menos pelos méritos de Juan como amante – embora tivesse qualidades lúbricas – e mais por conta daquilo que descobrira ser capaz de forjar, engendrar, arquitetar nas próprias carnes desejantes.

Naquela mesma tarde, Ariana ficou sabendo que a cicatriz que Juan ostentava havia sido feita por uma mulher em fúria, ao ser abandonada. Ele jamais havia suposto, antes, que uma mulher seria capaz de acertá-lo daquela forma.

– Quase morri. Desde então, nunca mais subestimei uma fêmea – disse, ao concluir o vago relato.

Juan Luna também contou que descendia de uma nobre estirpe de guerreiros incas. Nascido em Cuzco, considerava-se filho, embora bastardo, do grande império chamado Tawantinsuyu – nome quíchua do Império Inca.

– Eu nasci exatamente no umbigo do mundo – explicou, destilando depois palavras em sua estranha e sonora língua ancestral.

Entre os seus ascendentes, também havia, segundo contou, um negro e um espanhol. O africano foi levado à região do Caribe, mas fugiu, subindo a cordilheira, e se casou com a filha de um líder espiritual. Havia sido retirado da mesma região onde a mitologia afirma ser a pátria de Mêmnon, herói que era sobrinho de Príamo e filho da Aurora. Quanto ao espanhol, tratava-se de um conquistador que procurava prata na região e estuprou a filha de um guerreiro. Foi capturado e colocado, vivo, para assar. Sua carne foi comida pelos familiares da moça violada e seus ossos, abandonados na selva. Ariana soube ainda que a mãe de Juan se chamava Megaira. Quando o avô descobriu o significado grego do nome da filha, criou-a para ser o avesso do que sugeria aquela nômina. Submissa, sofreu sem remissão nas mãos do marido violento e autoritário.

– A sorte de meu pai foi ter morrido antes de eu ter idade suficiente para matá-lo – disse, com uma ponta de ódio cortante no céu da boca. Juan Luna acreditava que a mulher não era um gênero, mas um estado evolutivo, um além-do-homem.

Ao fim daquela tarde, Ariana já sabia ao menos uma dezena de coisas sobre Juan. Mas parecia que quanto mais aquele homem se revelava, mais estranho ficava. Estranheza que culminou quando ele, antes de ir, resolveu cobrar o preço combinado para posar para ela, como se ela o tivesse ficado desenhando apenas.

– Tawa pachak, tawa pachak reais – dizia Juan, com o fito de testar o que ela retivera das lições de quíchua daquela tarde.

Já no segundo encontro, Ariana se desfez da impressão de que Juan talvez fosse michê. A cobrança que ele fez do preço combinado para posar havia deixado nela uma sensação incômoda. Tinha ido para casa com a razão extraviada pelo desejo. Sentia, no entanto, como se tivesse comprado o corpo daquele homem – ideia que lhe causava um misto de excitação e vergonha.

Ao desfazer a dúvida, descobriu também ser apenas fachada o trabalho como modelo vivo. O negócio do peruano era vender drogas no campus da universidade. E o sucesso do empreendimento era garantido, pois não lhe faltava mercado consumidor e a repressão era nenhuma. Aliás, nenhuma ali dentro, já que para chegar com a droga naquele lugar era preciso ter perícia.

Pouco a pouco, Ariana foi sendo enredada nos negócios de Juan. Transportava drogas de todo tipo em seu carro, estocava entorpecentes e armas em seu estúdio. Chegou a viajar com ele para a Bolívia, durante as férias, trazendo drogas e subornando policiais rodoviários no caminho de volta. Quanto mais e mais intensamente amava aquele homem, sua relação com esse mundo marginal só se estreitava.

O período imediatamente posterior à viagem para a Bolívia foi aquele em que Juan mais faturou. Revendia a droga que ele mesmo havia trazido, o que elevava às alturas seus lucros. Alguns meses depois, no entanto, começou o período da crise. Nos negócios, não na relação. Apreensões de drogas em todo o país fizeram faltar material no mercado. O que se conseguia era de má qualidade e rendia pouco. Além disso, a venda na universidade não estava fácil como antes.

– Em ocasiões como essas, é preciso diversificar – sentenciou Juan.

Tal diversificação consistia em agir onde havia brechas. Tinha bons contatos e uma mulher que não levantava suspeitas. Diante do quadro, o sequestro era a opção mais fácil e segura. O casal não atuaria no grupo de frente, que se arrisca para raptar a vítima. Simplesmente tomaria conta dos sequestrados. Com isso, aquela menina rica, nascida e criada numa mansão nos Jardins, passou a habitar barracos e cortiços de diversas periferias. Chegou a dormir em chão de terra batida, em cima de jornais velhos. E realizava fantasias em matagais, represas ou mesmo em chãos diversos. À família, disse simplesmente que passaria a morar em seu (pseudo) escritório, mas raramente era encontrada por lá.

– Essa juventude... – lamentava sua mãe, sem supor qualquer nada.

Até que um dia a polícia estourou o cativeiro de um sequestrado que ela e seu homem vigiavam. Algemada, no camburão, imaginava a proporção nacional do escândalo. "Princesa bandida" ou "patricinha pistoleira" poderiam ser dois epítetos seus a partir dali, já que o jornalismo policial é pródigo para inventar nominações esdrúxulas. Especialistas de toda sorte emitiriam juízos vazios, tentando explicar o incompreensível: como ela, filha de Aristarco do Albuquerque Prado, pôde ter se envolvido com um bandido daquela laia.

Talvez estivesse chegando perto do instante em que começaria a odiar Juan Luna. Mas nada disso lhe importava agora. Carregava e alimentava em si um filho. Filho bastardo de Tawantinsuyu. E contra tudo – medidas, projetos, possibilidades, evidências, conveniências, conivências, projeções e estatísticas – ela amou. Amou. Amou desbragadamente. E quem ama não sabe calcular.

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Exercício 1

Concha Celestino

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AUSÊNCIA. Todo episódio de linguagem que encena a ausência do objeto amado – sejam quais forem sua causa e duração – e tende a transformar essa ausência em provação de abandono.

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Fragmento 1

Marco, marca, cicatriz. Minha memória insiste nele como uma ferida que não pára de doer. Marco obstinado, Marco amoroso e leal até os ossos, Marco de difícil aproximação.

Revejo-o sentado, olhando para a xícara. Longos minutos olhando, esquecido do café que esfria e acaba abandonado intacto. Aprendi a identificar nesses sinais algum furacão se formando dentro dele, mais um tempo de mutismo e isolamento começando.

Alheia-se de tudo, transita o mínimo entre o ateliê e os outros espaços da casa e se responde às minhas perguntas aflitas, é com monossílabos ou grunhidos. Seu distanciamento me exaspera. Parece-me frio e calculista, um autista emocional. Depois de dias, às vezes semanas, um sorriso quase tímido e um movimento das sombrancelhas anunciam que ele está voltando e que será de novo o descomplicado, o inquieto, o amigo que me ama.

Qual dos dois é o pintor? Desisto de decifrá-lo, eu que só sei amá-lo. Acho que pintando ele procura integrar uma personalidade partida, natureza luminosa e sombria. A arte é uma veneração para ele. Todo o perfeccionismo, todos os sacrifícios são para a pintura. Viver com ele pressupõe compartilhar essa veneração.

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Fragmento 2

Ele é como um cervo que escala um penhasco e fica confrontando o abismo. Seu silêncio e isolamento propagam uma galharia espinhosa, intransponível, ao seu redor, uma aridez que me resseca. Como um gato que pressente uma tempestade, refugia-se nos cantos da casa, sai sem aviso e volta desarvorado, como quem andou sem rumo, o olhar atravessando as coisas. Vê-se que está atrás de algo que não é deste mundo. Agora eu só queria ser invisível, fazer meu trabalho em silêncio, cuidar do jardim, aprender a não existir na vida de Marco ou esperar que a ordem das coisas se reestabeleça. Será que de novo ouviremos os passos um do outro como um conforto, como que avisando, olhe, eu estou aqui? E estes dias desnorteados terão sido um apêndice no tempo, um tempo arrancado da passagem natural dos dias e das horas, um tempo-assombração que me desestabiliza e me faz perguntar o que faço aqui com este homem que me machuca, que é que estou fazendo nesta casa? Fico me controlando para não quebrar as coisas, não esmurrar seus quadros, mas entortei uma colher que estava enxugando. Emudeci de ódio, que é a pior forma de silêncio, um silêncio precário fadado a estilhaçar-se a qualquer momento.

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Fragmento 3

Há dias que dou de cara com o trapo sujo quando abro a porta da casa. Pisoteado, amarfanhado, chutado para o canto. O tapete de retalhos coloridos estendido na entrada há menos de uma semana é agora esse farrapo imundo, estorvo para a alma e os olhos, imagem de um desamparo latejante a repetir-me - olha o que te tornaste, olha o que te tornaste - até que, num ímpeto de desespero e raiva, vou acabar dando o sumiço nele.

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Fragmento 4

Vinha tentando não existir, movendo-me silenciosamente, procurando esquecer-me de mim e de tudo no trato com as plantas, cavoucando a terra com as mãos, até sentir a vida brotar em algum lugar escondido de meu corpo. Então saí de casa, fui dar uma volta, sentir que tenho um corpo enquanto caminho, que tenho um peso e um balanço quando me movo e vi uma árvore que cobriu-se de flores rosadas da noite para o dia, senti a brisa alisar-me a pele, é Deus, pensei, está aqui e me acaricia, ouvi o cântico da criação e só desejei ser como uma folha que recebe a chuva ou um punhado de terra que absorve a umidade, viver para aquilo para o qual fui criada: dar glória a Deus. Retornei à casa sem pressa, leve e refeita, meu corpo quase flutuava. Na entrada, recolhi o pano amarfanhado e levei-o para o tanque. Lavei, esfreguei, enxaguei o pano várias vezes com uma alegria e uma energia que ficaram brilhando ao sol quando o estendi no varal.

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Fragmento 5

De manhã Marco saiu do ateliê quando fiz café. Veio atraído pelo cheiro, estendeu-me a xícara e, enquanto eu derramava o café, ele me olhou enternecido, imagino que agradecido por cuidar dele. Era um olhar envergonhado, de quem só então se dava conta de que continuei aqui todos estes dias. Talvez estivesse surpreendido por eu não ter batido a porta e sumido. Viu a porta da cozinha aberta, saiu para o alpendre e ficou ali, hipnotizado, olhando o movimento das árvores e o tapete colorido balançando no varal. Ficou um tempo lá fora, andando pelo quintal e, quando voltou, pensei que também devia ter escutado a música da criação, porque acariciou minha cabeça longamente e depois disse, energizado, agora vou pintar, sei que vou pintar. Continuei muda, lavando a louça, agradecendo a Deus e chorando, porque Marco estava voltando, estava voltando e seria de novo o amigo, o amado, o companheiro descomplicado.

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A Intromissão do Imperfeito no Discurso Amoroso

Elizabeth

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LEMBRANÇA. Rememoração feliz e/ou lancinante de um objeto, de um gesto, de uma cena, ligados ao ser amado, e marcada pela intromissão do imperfeito na gramática do discurso amoroso.

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A casa era na última rua de um dos bairros periféricos de Mogi. No
finzinho, mesmo, do perímetro urbano. Dela, se avistavam as colinas
relvadas, eternamente abraçadas pela transparência azulada da brisa.
Uma delas, a mais próxima, salpicada de sempre-vivas. O ano era de
1990. Naquele dia -- sábado ensolarado de verão -- deixei-me estar,
alguns instantes, em frente à casa, ao lado do canteiro dos poucos
pés de milho de pipoca que havíamos semeado juntos, a olhar ensi-
mesmada para onde teria ido. Diferente do costume, saíra sem se
despedir.

Vagueei o olhar por sobre o verde ondulante da colina e a encosta
recém-enxuta do barranco do final da rua, onde crianças, alheias
ao fluxo estagnado, a céu aberto, moldado pela valeta sulcada
rente à extremidade da rua de terra, brincavam com seus carrinhos
improvisados, desafiando a lei da gravidade.

De repente, disse comigo que o melhor era recolher-me à casa e
iniciar os preparativos do almoço. Colhi duas rosas do jardim para
enfeitar a mesa e entrei. No rádio da casa ao lado, Chico Buarque
finalizava a valsinha "... E o mundo amanheceu em Paz!" ...

A canção remetera - me à ocasião, 10 meses atrás, em que
intuíramos o dilatar da família. Daí, a necessidade dos pequenos
arranjos caseiros.

Era final de semana. Afastara-se da casa, munido com a faca da
cozinha. Eu,de alegria e saia rodada florida. Calçávamos sandálias
Havaianas, logo reforçadas por galochas meio cano, adquiridas na
travessia do terreno alagadiço das taboas. Subimos a primeira ele-
vação da encosta de onde avistávamos, com o vento no rosto e
colando nossa roupa ao corpo, a imensidão do céu e da terra --
a urbanizada e, um pouco, da que não. Se não necessitasse
imaginar-me, adiante, a Dulcinéia, aquela por quem o Quixote
enfrentara os moinhos ou gigantes, e a escolha de tal ou qual
cabendo ao olhar de quem os via, adoraria, naquele momento,
correr com o vento como fizera a noviça rebelde, nas montanhas
do filme. Mas, o estar só e o andar em companhia exigem, ambos,
adequação diversa.

Do alto, avistara a touceira de bambus. Gigantescos, mesmo ao
longe, riscadinhos de amarelo. Vergavam-se vigorosos com o vento.
Em sua direção, caminháramos. À primeira vista, a escolha certeira.
Nãotardou e pôs-se a desferir incontáveis e certeiros golpes, naquele
que lhe parecera o mais ameaçador de todos. Qualquer comentário
sobre as nossas galochas ou a maestria com que enfrentava o desa-
fio, naquele momento, era desconsiderar seus ímpetos de bravura.
Calei-me. Silenciosa, ao seu lado, saboreava a felicidade de ser,
simplesmente companheira da sua história.

O sol, lançando um inesperado lampejo para a lua, paradoxalmente
impaciente com a duração da cena, era como se dissesse: -- Fica
aqui, por um pouco; vou, ali, e já volto. Foi-se. Se voltou, não o sou-
bemos. Quando retornamos à casa, sob o ensolarado da lua, envere-
damos por outro caminho. Atravessamos duas quadras da Vila Natal,
sob olhares entre curiosos e incrédulos de uns poucos transeuntes
domingueiros. O gigante, vencido pela determinação da faca da cozi-
nha, era arrastado pelas mãos do herói das galochas de terra,
seguido de sua fiel companheira. O fato não era comum. Seria,
se ao invés de gigante, se estivesse arrastando um simples bambu.

No aconchego do pequeno abrigo, enquanto se banhava, eu punha
água ao fogo. Uma panela com algas marinhas. Outra, para esca-
ldar o tofu cortadinho em cubinhos .A cebolinha picada, ao lado,
aguardava o momento de se lançar na tigela, sobre o aroma do mis-
sô dissolvido na sopa simples, forte e farta. Aquecidos, costumá-
vamos, através dos abraços, visitar os céus e as estrelas. Como
era bom dormir ao seu lado. Fôra, naquela noite, mais que réstia de
estrelas, do universo, partícula primordial se aninhara em mim.

O gigante do dia anterior transformara-se em luminárias para a
guarda da cama. Outras duas partes, em escora para o varal de
roupas. Pequenos dardos, riscadinhos de amarelo, em posição de
alerta, como soldadinhos camuflados, faziam o cerco de proteção
nos canteiros das hortaliças. Vizinhos se fartaram com as demais
ripas. A vida era simples. A felicidade ao alcance das mãos.
A maior aventura: Existir.

Mas, hoje, passados os meses, saíra sem se despedir.

Entre o empilhar da pequena louça na pia e o mexer das panelas,
escaldavam-se, numa panelinha menor, talinhos verdes, pequeni-
nos franzidos de testa, silhuetas de reticências ... Entremeava
olhares vagos ora para o vitrô da cozinha ora para o bercinho no
quarto. Almoço pronto. Mesa posta. As duas rosas.

Não tardara. Passos lépidos e ofegantes transpassaram a porta.
Estendera o braço oferecendo-me a primavera, toda ela,
contida num imenso ramalhete de sempre-vivas, recém-colhidas.
Não era costume cantar. Mas cantou:"...Receba as flores que lhe
dou. Em cada flor, um beijo meu..". Aproximara insinuante seu
corpo ao meu. Na casa ao lado, outra música: "...A noiva do cau-
bói era você, além das outras três ...". Na tentativa de conciliar
a dissonante diacronia das letras, sorri. Recebi as flores, o sorriso
dele, seu canto, e a insinuante proximidade do corpo. No esboço
do abraço, vi, em sua mão oculta, outro buquê, tão lindo quanto o
primeiro. Para quem ? Fitei, incontinente, como se mirasse o
longe, o pequenino casulo numa haste de flor. A dúvida, fino fio
de seda, lacrimejava do invólucro sagrado -- a confiança.
Transmutava-se o primevo, em recente e desconhecido senti-
mento. Até hoje, nunhuma explicação . Tempos pretéritos.
Distantes e tão presentes. Até hoje, sempre vivos. Ainda me
flagro esquecida neles, a modo de reconstituir fragmentos. Pe-
quenas imperfeições, azuis perfeitos de céus, sonhos mais-
que-perfeitos. Colar caquinhos. Criar mosaicos. Ressignificar os
sinais das perdas.E, se de tudo fica um pouco, desses tempos,
ficou, também. Dizem, alguns, transformados. Talvez. O "a céu
aberto" infraestruturou-se. A brisa da relva o MST comeu. No rá-
dio da casa vizinha, agora, só se ouve óperas. O passado
passou. O presente é. O imperfeito era.

Em meu coração, as lembranças, sempre vivas.
As sempre-vivas sempre vivas.

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